Membro da
Comissão Nacional da Verdade responsável por coordenar a apuração das denúncias
sobre violações aos direitos indígenas entre 1946 e 1988, a psicanalista Maria
Rita Kehl informou ontem (22) que a comissão vai analisar todas as denúncias e
fatos narrados no chamado Relatório Figueiredo, extenso documento produzido em
1968 e encontrado há poucos dias após mais de 40 anos dado como perdido.
Embora ainda não
tenha se debruçado sobre o documento localizado pelo pesquisador e
vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, a
psicanalista disse estar convencida de que o relatório de pelo menos 5 mil
páginas contém “muitos e importantes relatos de violações”, o que vai exigir
uma avaliação cuidadosa para evitar equívocos ou conclusões precipitadas.
“É um documento
complexo que vai nos dar muito trabalho. Já estamos prevenidos de que vamos ter
que analisá-lo com muito cuidado e discernimento. Ao mesmo tempo em que relata
muitas violações aos direitos dos povos indígenas, por se tratar de um
relatório elaborado em plena ditadura militar, também traz algumas acusações
que vão exigir que procuremos outros subsídios para avaliar [as denúncias] sem
nos precipitarmos”, disse a psicanalista.
Produzido entre
os anos de 1967 e 1968, quando o então procurador Jader de Figueiredo Correia
percorreu o país a convite do extinto Ministério do Interior para apurar
denúncias de crimes cometidos contra a população indígena, o documento era dado
como perdido em um incêndio no ministério há mais de 40 anos e foi recentemente
encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, por Zelic.
De acordo com o
pesquisador, o relatório foi entregue pela Fundação Nacional do Índio (Funai)
ao Museu do Índio em 2008. Distribuído em várias caixas e misturado com outros
documentos, não estava catalogado, de forma que, durante décadas, os servidores
dos dois órgãos indigenistas não se deram conta de que o que parecia um
processo qualquer, era, nas palavras de Zelic, talvez o “mais importante
documento produzido pelo Estado brasileiro a respeito das violações aos
direitos indígenas, como a apropriação de suas terras e de seus recursos”.
“É um documento
que pode ajudar muito a sensibilizar a sociedade para a situação que os índios
ainda hoje vivem no Brasil”, disse Zelic à Agência Brasil. De acordo com o
pesquisador, o resgate do Relatório Figueiredo pode ser creditado como um dos
avanços possibilitados pela criação da Comissão Nacional da Verdade, criada em
maio de 2012, por meio da Lei 12.528 para apurar graves violações de direitos
humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
Durante o
trabalho de apuração, o grupo coordenado por Figueiredo Correia apurou
denúncias como o extermínio de tribos indígenas inteiras, torturas, expulsões e
diversos tipos de violência, muitas vezes praticada por servidores do extinto
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista federal que antecedeu a
Funai (criada em 1967) e sobre o qual pesavam suspeitas tão graves que o
ex-ministro do Interior, Albuquerque Lima, admitiu, durante depoimento no
Congresso Nacional, em 1977, ser impossível manter o órgão “por culpa de
algumas dezenas de servidores menos responsáveis”.
Nove anos antes
da declaração do ministro e em consequência das informações reveladas pelo
trabalho de Figueiredo Correia, o Ministério do Interior recomendou a demissão
de 33 pessoas; a suspensão de 17; a cassação da aposentadoria de um agente de
proteção aos índios e de dois inspetores e apontou ainda o envolvimento de
outras pessoas em práticas ilícitas ou prejudiciais aos índios, mas cuja
punição não era de competência do Poder Executivo. Posteriormente, muitos
funcionários públicos punidos foram inocentados na Justiça e retornaram ao
trabalho.
Filho do
ex-procurador, o advogado Jader de Figueiredo Correia Junior comemorou o fato
de o relatório produzido por seu pai em meio “a constantes ameaças de morte,
alguns atentados” e o peso de ter que pôr a própria família sob proteção
policial ter sido localizado.
“É uma notícia
fantástica. Não apenas para a família, que vimos o quanto meu pai sofreu para
tentar chegar a uma verdade a que, infelizmente, o país não tinha acesso, mas
principalmente porque o documento é importantíssimo para o país. A partir dele,
parte de história poderá ser reescrita e o Brasil e o mundo poderão enfim ter a
exata noção dos crimes cometidos contras os índios durante determinado
período”, disse o advogado, acrescentando que, até o pai morrer, quando ele
tinha 14 anos, o tema da violência contra os índios era recorrente.
“Muitas pessoas
próximas ao meu pai que conheciam o teor do documento, as coisas que ele tinha
visto durante suas viagens, a importância e a gravidade dos fatos por ele
narrados, não entendiam como o documento podia ter desaparecido. Quer dizer,
entendiam. Era algo conveniente para muitas pessoas”, disse o advogado, que
ainda hoje lembra de alguns relatos do pai. “Meu pai contava ter chegado a
aldeias e encontrado toda a comunidade morta por envenenamento, pelo contato
[com os não índios] ou por outros meios. Lembro de ele contar que em uma aldeia
o grupo encontrou uma índia amarrada a duas árvores pelos pés, de cabeça para
baixo e cortada a facão”.
FONTE: Alex Rodrigues / Agência Brasil
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