FAÇA DIFERENTE

FAÇA DIFERENTE
FAÇA a COISA CERTA

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Martin Luther King: A agonia de um rei em depressão




Um dos maiores heróis americanos, Martin Luther King enfrentou a injustiça de uma nação. Mas, por trás do poderoso líder, havia um homem infiel e deprimido, que vivia à sombra do suicídio







Quando foi avisado de que tinha ganhado o prêmio Nobel da Paz, em 14 de outubro de 1964, Martin Luther King Jr. estava sob o efeito de tranqüilizantes, sozinho num quarto de hospital em Atlanta. Sua mulher, Coretta Scott King, ligara para dar a notícia. Logo depois, o quarto foi inva­dido por fotógrafos. Os jornais do dia se­­­­­guin­te diriam que King tinha sido inter­nado três dias antes, sofrendo de febre e exaustão. Uma meia verdade. Aos 35 anos, ele estava lá por causa de um problema que o acompanhava desde criança: a depressão.

A imagem de King que se eternizou é a do pastor, líder político e pacifista que lutou pela igualdade entre negros e brancos nos Estados Unidos. Um homem corajoso e otimista. Mas ele também era frágil e vulnerável. “Durante entrevistas que fiz com amigos de Martin Luther King, seu comportamento deprimido foi citado inúmeras vezes. Ele chegou a questionar em alguns momentos se sua vida valia a pena. Mas essas histórias de desespero não ganharam os jornais na época porque a imprensa não costumava noticiar dramas desse tipo como faz hoje”, diz o escritor americano Taylor Branch, que passou um quarto de século estudando a vida de King e, no ano passado, lançou At Canaan’s Edge (“À beira de Canaã”, inédito no Brasil), o último volume de uma trilogia sobre o líder.

Entre 1965 e 1968, nos anos finais de sua vida, King estava numa encruzilhada. Depois da vitória contra as leis racistas dos Estados Unidos, o líder se envolveu com causas como a luta contra a Guerra do Vietnã. Ao fazer isso, perdeu o apoio de vários aliados, fossem eles negros ou brancos. Enquanto isso, seus constantes casos extraconjugais eram usados pelo FBI (a polícia federal americana) para desestabilizar seu casamento e aprofundar sua depressão. O objetivo era tirar King da vida pública – ou mesmo fazê-lo dar cabo da própria vida. Em meados dos anos 60, o homem que enfrentara todo o racismo de uma nação estava encurralado, ameaçando sucumbir ao próprio sofrimento.




No caminho, uma Rosa

Nascido em 15 de janeiro de 1929, em Atlanta, no estado da Geórgia, King vivia com os pais, os irmãos e a avó materna, Jennie Williams. Quando o menino tinha 5 anos, ela sofreu um desmaio em casa. King não suportou a idéia de que Jennie pudesse ter morrido. Subiu as escadas correndo e se jogou por uma janela do segundo andar. Sua mãe, Alberta, o encontrou no quintal, estatelado no chão – o pequeno King só abriu os olhos depois que disseram que Jennie estava bem. A cena se repetiria sete anos depois, em maio de 1941. Ao saber que sua avó tinha sofrido um ataque cardíaco, voltou correndo para casa e encontrou a família chorando. King se jogou pela mesma janela, sobrevivendo de novo. Mas, dessa vez, a avó estava morta. O menino passou diversas noites em claro, chorando sem parar.

O lado depressivo do garoto contrastava com as boas condições de sua família. Martin Luther King pai, pastor da Igreja Batista, era o negro mais bem pago de Atlanta. Nascido Michael, ele trocara o nome para Martin Luther em 1935, homenageando o fundador do protestantismo. A mudança se estendeu ao filho, que acabaria herdando também a vocação religiosa. Aos 19 anos, Martin Luther King Jr. se formou em Sociologia no Morehouse College, a melhor escola para negros de Atlanta. Em 1954, depois de se doutorar em Teologia pela Universidade de Boston, King se tornou pastor batista em Montgomery, no Alabama.

Nos anos 50, King já estava envolvido na luta pelos direitos dos negros: era do comitê executivo da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês). Nos estados americanos do Sul, como o Alabama, os negros eram cidadãos de segunda classe. 









Não podiam votar, eram proibidos de entrar em certos clubes, lojas e igrejas e, no transporte público, tinham que dar preferência aos brancos.


Em 1º de dezembro de 1955, toda essa discriminação foi posta em xeque por uma inofensiva costureira negra de 42 anos. Cansada e com dores nos pés depois de um dia de trabalho, Rosa ­Par­ks se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco. Foi presa. Ao saber da notícia, King e outros líderes da NAACP transformaram o caso de Rosa no estopim da luta contra a desigualdade racial que ficaria conhecida como o Movimento pelos Direitos Civis. No dia seguinte, os negros de Montgomery iniciaram um boicote aos ônibus, sob a liderança do quase desconhecido pastor de 26 anos. Foram necessários 382 dias até que, em 21 de dezembro de 1956, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarasse inconstitucional a segregação racial nos transportes públicos do país.
















Durante o boicote em Montgomery, viajando cerca de 25 dias por mês, King se tornara respeitado em todo o Sul dos Estados Unidos. Em contrapartida, tinha sido preso, criticado por membros de sua igreja e acordado inúmeras vezes de madrugada por telefonemas com ameaças. Diante disso, King não escondia a importância do apoio da esposa. Ele e a musicista Coretta haviam se conhecido em Boston, em 1952. O casamento rendeu quatro filhos ao casal, mas não era um modelo a ser seguido. Desde o primeiro momento, o pastor foi infiel. Quando estava longe de casa, King se encontrava com várias amantes.

Um sonho de liberdade

Apesar do fim da segregação no transporte público, o racismo continuava em várias instituições dos Estados Unidos. Após o boicote de Montgomery, Martin Luther King continuou trabalhando por reformas. Seguidor declarado de Mahatma Gandhi, ele promovia manifestações pacíficas como boicotes, greves e passeatas, pontuadas por seus poderosos discursos. Em 1957, ele ajudou a fundar a Conferência da Liderança Cristã Sulista (SCLC, na sigla em inglês), instituição que presidiu até a morte.

Diversas organizações iam surgindo para engrossar o Movimento pelos Direitos Civis. O problema é que elas muitas vezes acabavam entrando em conflito entre si. Uma das principais polêmicas era a doutrina de não-violência de King. No início dos anos 60, ela ainda soava bem, mas já não convencia os que estavam cansados de apanhar da polícia. O líder muçulmano Malcolm X, por exemplo, não hesitava em dizer que os negros deviam responder com violência à brutalidade das autoridades. King, entretanto, tinha boas razões para preferir o pacifismo: ele fazia com que a violência vista no noticiário fosse protagonizada pela polícia. Assim, o público americano tendia a simpatizar cada vez mais com a causa da SCLC – e a doar dinheiro para a instituição.

Em abril de 1963, King lançou uma campanha para acabar com a segregação nos banheiros e lanchonetes de Birmingham, no Alabama, então considerado o mais racista dos municípios americanos. 

Durante uma passeata na cidade, o pastor acabou preso. A cadeia não era novidade para King – ao todo, foram mais de 20 prisões –, mas, daquela vez, o presidente John Kennedy interveio diretamente por sua libertação. O prestígio do pastor estava no auge.





Em 28 de agosto, King liderou a Marcha sobre Washington, que reuniu mais de 200 mil pessoas na capital americana. Diante delas, disse estar feliz por fazer parte da “maior manifestação pela liberdade” da história dos Estados Unidos. Essas palavras foram o início de um dos mais pungentes discursos de todos os tempos, que ficaria conhecido como “Eu tenho um sonho”. Por 16 minutos, King hipnotizou a multidão enquanto dizia sonhar com o fim da discriminação racial, evocando desde a Bíblia até a Declaração de Independência americana. Foi ovacionado.

A eloqüência de King chamou a atenção de todo o país. Inclusive a do FBI. Em um documento secreto escrito após a Marcha, ele foi apontado pelo órgão como “um potencial messias, capaz de unificar e eletrificar o movimento nacionalista negro”. O relatório citava uma prova inequívoca do carisma de King: sua nomeação, pela revista Time, como o Homem do Ano de 1963 – honraria inédita para um negro. A conclusão do documento não deixava dúvidas: era preciso acabar de uma vez com a influência do pastor.

Vitória e angústia

O assassinato do presidente John Kennedy, em 22 de novembro de 1963, fez King ter um mau pressentimento sobre a morte. “É o que também vai acontecer comigo. Esta sociedade está doen­te”, disse ele a um amigo logo após o atentado, de acordo com Taylor Branch. Sem dúvida, King era um alvo potencial da ira alheia. Afinal, ele não era só um líder pacifista negro. Era o maior ativista de esquerda dos Estados Unidos.

Durante todo o ano de 1964, o excesso de trabalho, as ame­a­ças anônimas e as intrigas en­tre as organizações negras fizeram King sair de cena. Segundo Branch, o líder se tornou assíduo freqüentador do hospital St. Joseph – onde, inclusive, receberia a notícia do Nobel. “Ele pediu para ser internado lá pelo menos uma dezena de vezes, porque só assim podia ficar sozinho e descansar à base de pílulas para dormir”, afirma. Mas, em 2 de julho, King interrompeu o isolamento para viver outro mo­mento de glória em Washington: a cerimônia em que o presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, que tornou inconstitucional toda a legisl­a­­­ção segregacionista dos Estados Unidos.

A euforia pela conquista histórica não significou o fim do Movimento pelos Direitos Civis. Faltava ainda garantir que os negros do Sul pudessem votar sem restrições. Isso motivou King a promover mais uma grande marcha, partindo da cidade de Selma em direção a Montgomery, em março de 1965. A polícia tentou parar os manifestantes, que resistiram sem violência até conseguir che­gar ao destino final. Cinco meses depois, a Lei do Direito ao Voto foi aprova­da pelo Con­­gresso, a­ca­­­­­­­­­bando com os en­­traves legais para os negros nas eleições.

Dez anos depois do início do boicote aos ônibus, o Movimento pelos Direitos Civis havia conseguido, ao menos em termos de legislação, igualar negros e brancos nos Estados Unidos. A vitória poderia ter garantido a King dias de felicidade. Mas sua vida privada estava em frangalhos. No início de 1965, quando ele ainda estava preparando a marcha de Selma, Coretta tinha recebido um pacote com uma fita e uma carta anônima. As gravações traziam conversas de King com amigos e mulheres, em que a infidelidade do pastor ficava clara – Coretta estava acostumada a denúncias e amea­ças, mas jamais tinha recebido uma fi­ta comprometedora com a voz do marido. Já o texto da carta que acompanhava a gravação dizia que King era “uma vergonha para todos nós negros”. No fim, o autor sugeria que ele cometesse o suicídio: “Você se acabou. King, só resta uma coisa a ser feita. Você sabe o que é. Só existe uma saída. É melhor você pegá-la antes que seu lado nojento, anormal e fraudulento seja revelado para a nação”.

A carta e a gravação não tinham sido obra de um membro do movimento negro. Elas eram um golpe baixo da campanha do FBI contra King. Diálogos sobre adultério haviam sido obtidos com gravadores colocados na casa e no escritório de King, além de grampos em telefones de quartos de hotel. Os agentes federais sabiam que, por causa da depressão crônica, King seria capaz de se matar num momento de crise. A fita era uma tentativa de fazer com que isso acontecesse – essa tenebrosa estratégia foi posteriormente admitida por William C. Sullivan, ex-diretor-assistente do FBI, num depoimento dado ao Senado americano em 1975.

A explosiva fita acabou chegando às mãos de políticos, religiosos e jornalistas. A idéia de suicídio não foi levada adiante, mas a depressão do líder se agravou. “King reclamou que suas pílulas para dormir não estavam fazendo mais efeito”, escreveu Taylor Branch em At Canaan’s Edge. Em público, se limitou a fazer um mea-culpa nas entrelinhas de seus sermões na igreja, dizendo coisas como: “Eu nunca me coloquei como um grande modelo, mas tenho que fazer o melhor possível para redimir a mim mesmo e a América.”

Memória americana

Depois da aprovação da Lei do Direito ao Voto, a vida política de King precisava de uma nova causa. Ainda em 1965, ele decidiu usar o Movimento pelos Direitos Civis para se opor à Guerra do Vietnã, em que os Estados Unidos haviam acabado de entrar. King foi atacado por todos os lados, incluindo amigos e inimigos. Ninguém queria que ele se metesse com o conflito – que ainda não tinha se torna­do um evidente beco sem saída. King mu­­dou o discurso e apostou na chamada Campanha dos Pobres.

A luta contra a pobreza nem de longe contava com a simpatia que King arrebanhara para a questão racial. Ativistas próximos do líder achavam que o melhor seria se preocupar em fortalecer as conquistas dos negros no Sul do país. A falta de resultados em suas novas lutas aumentou o desalento de King. Duas semanas depois de completar 39 anos, pressionado por Coretta, ele finalmente resolveu admitir um de seus casos extraconjugais. Ainda assim, a esposa foi capaz de seguir ao lado dele.

Em 4 de abril de 1968, King estava em Memphis, no Tennessee, para apoiar uma greve de lixeiros. Sua liderança estava desgastada, assim como sua capacidade de sonhar com um país mais justo.

A desilusão dava o tom do sermão que ele começou a escrever naquela tarde, intitulado “Por que a América deve ir para o inferno”. O texto ficou inacabado. Às 18h01, enquanto conversava com amigos na sacada do Lorraine Motel, King levou um tiro no pescoço. Hospitalizado, morreu por volta das 19h. Cinco dias depois, o pastor foi enterrado em Atlanta, num funeral acompanhado por 300 mil pessoas. O suposto assassino foi capturado, mas o crime nunca foi esclarecido.


Após sua morte, Martin Luther King Jr. virou nome de ruas, escolas e bibliotecas e ganhou um feriado nacional nos Estados Unidos (a terceira segunda-feira do mês de janeiro). 

Em 2008, foi inaugurado seu memorial no National Mall – a esplanada em Washington, próxima à Casa Branca, onde foi feito o discurso “Eu tenho um sonho”. Além do líder negro, apenas os ex-presidentes Thomas Jefferson e Abraham Lincoln conquistaram honraria semelhante.

O King eternizado no panteão dos heróis americanos, entretanto, não é o mesmo que foi morto em Memphis.

Em tempos de invasão do Iraque, a história do King que protestou contra a guerra e a pobreza tem sido deixada de lado. 


O historiador americano David J. Garrow, autor de um premiado livro sobre o pastor – Bearing the Cross (“Carregando a cruz”, inédito no Brasil) –, não estranha esse esquecimento. “Os Estados Unidos preferiram a imagem romantizada de um homem doce e otimista. Principalmente porque o King dos anos finais ainda seria um estorvo até hoje, no governo de George W. Bush.

Os quase aliados
Quatro líderes e suas relações controversas com King

Ralph Abernathy
Amigo e braço direito de King, o reverendo sabia falar com os negros humildes – o pastor se dava melhor com os intelectuais. Mas Abernathy não era tão leal: quando King ganhou o Nobel, ele achou que merecia metade do dinheiro. Acabou faturando bastante ao lançar uma autobiografia cheia de fofocas sobre a vida sexual de King. Morreu em 1990.

John Kennedy
Graças ao apoio de King, o democrata conquistou os votos da comunidade negra e foi eleito presidente dos Estados Unidos em 1960, derrotando o rival Richard Nixon por uma diferença de menos de 1%. Em agradecimento, Kennedy apoiou o Movimento pelos Direitos Civis. Antes de ser assassinado, em 1963, teria convencido King a não fazer um discurso muito crítico ao governo na marcha de Washington.

Malcolm X
O objetivo de ambos era o mesmo: combater a discriminação. Mas, enquanto King optava pelo pacifismo, Malcom X defendia que os negros reagissem com violência. Essas diferenças impediam acordos entre os dois, que só se encontraram uma vez, em 1964. No ano seguinte, Malcolm X foi morto a tiros (King morreria da mesma forma, com a mesma idade: 39 anos).

Lyndon Johnson
Vice de Kennedy, assumiu a presidência em 1963 e a manteve nas eleições de 1964. Johnson negociou com King a elaboração das leis dos Direitos Civis e do Direito ao Voto, aprovadas em seu governo. Mas, quando o ativista se pronunciou contra a Guerra do Vietnã, o presidente parou de colaborar com ele – e chegou a chamá-lo de “pastor hipócrita”. Johnson deixou o cargo em 1969 e morreu em 1973

Crime ou conspiração?
O suposto assassino de King morreu dizendo que era inocente

Dias depois do assassinato de Martin Luther King, o traficante americano James Earl Ray foi apontado pelo FBI como principal suspeito. Capturado em junho de 1968, em Londres, Ray confessou o assassinato de King em 10 de março de 1969. Três dias depois, voltou atrás. Mas já era tarde. Foi condenado a 99 anos de prisão e passou a vida tentando provar sua inocência.
Aparentemente, Ray foi orientado a confessar o crime por seu advogado, Percy Foreman, numa estratégia para evitar um julgamento (e o risco de pegar pena de morte). Quando se arrependeu da confissão, Ray disse que era apenas uma peça sem importância numa enorme conspiração – a família de King ficou convencida de sua inocência. 
Ray morreu em 1998, aos 70 anos, sem saber dizer quem seriam os verdadeiros culpados. Nas últimas décadas, mais de dez livros com teorias sobre o assassinato foram lançados nos Estados Unidos. Há quem acredite que não apenas o FBI, mas também a CIA (a agência de inteligência americana), a polícia de Memphis e até o presidente Lyndon Johnson estavam envolvidos numa conspiração para matar King.
FONTE: Aventuras na História / Adriana Maximiliano

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Trotski: o poeta da luta armada


Ovelha negra entre os revolucionários russos, Trotski incomodou até o fim de seus dias e acabou assassinado - por ordem de Stálin - com uma picaretada na cabeça

Leon Trotski foi um ótimo exemplo de como se pode “endurecer sem perder a ternura”. Mentor da revolução ao lado de Lenin, ele organizou e liderou o Exército Vermelho, tomou o poder em nome do povo e ainda encontrou tempo para escrever alguns livros que mudaram o rumo do marxismo revolucionário. Perseguido pela ditadura stalinista, foi obrigado a abandonar a URSS. E acabou assassinado no México, a mando de Stálin, com uma pancada de picareta na cabeça. Ainda assim – e apesar de tudo –, Trotski conseguiu ser o mais pop entre todos os revolucionários russos. Era amigo de artistas, gostava de festas, cinema, arte, música... E enxergava uma certa poesia na vida.
“Natascha acabou de chegar pelo pátio até a janela e abriu-a completamente para que o ar possa entrar mais livremente em meu quarto. Posso ver a larga faixa de verde sob o muro. Sobre ele, o claro céu azul. E, por todos os lados, a luz solar. A vida é bela. Que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda a opressão, de toda a violência, e possam gozá-la plenamente”, escreveu em seu testamento, pouco tempo antes de ser morto.
Disciplinador implacável
O nome verdadeiro de Trotski era Lev Davidovitch Bronstein. Filho de um próspero fazendeiro judeu, nasceu na Ucrânia, a 7 de novembro de 1879.

Mesmo vivendo em uma família abastada, o regime czarista – calcado nas desigualdades sociais – sempre o incomodou. Tanto que, ainda adolescente, já participava de grupos clandestinos de oposição ao regime. Em 1897, com apenas 18 anos, organizou um desses grupos, a Liga Operária do Sul da Rússia. Acabou sendo preso e condenado ao exílio na Sibéria – a primeira de uma série de condenações desse tipo. Naquele período, conheceu sua primeira mulher, Alexandra Sokolovskaia. Acredita-se que foi ela quem apresentou a Trotski as bases do marxismo. Com Alexandra, teve duas filhas: Nina e Zina. As meninas foram educadas segundo os mais rígidos princípios marxistas – uma tarefa que coube apenas à mãe na maior parte do tempo, já que o pai estava quase sempre sendo preso ou fugindo do país.
Foi justamente em um desses exílios, em uma passagem por Londres, que Trotski se aproximou de Lenin pela primeira vez. As diferenças entre os dois sempre foram muitas. Àquela altura, antes da revolução, o primeiro preferia alinhar-se com o mencheviques (moderados), enquanto o segundo já assumia a liderança dos bolcheviques (radicais). Mais adiante, no entanto, Trotski uniria-se à corrente política de Lenin e lideraria o Exército Vermelho até a vitória. De bonzinho, o camarada Trotski não tinha nada. Era um rígido disciplinador e apoiava o uso da pena de morte para atos de covardia e deserção. “Aviso que, se qualquer unidade militar recuar sem ordens para tal, o primeiro a ser fuzilado será o comissário político da unidade, e depois o comandante. É o que prometo solenemente diante de todo o Exército Vermelho”, declarou certa vez, em alto e bom som, durante uma manifestação pública.
Exilado também, em outras tantas oportunidades, Trotski foi desenvolvendo sua principal contribuição teórica para o movimento revolucionário russo: a idéia de revolução permanente. “Ele estava convencido de que, se a revolução não se espalhasse para a Europa ocidental, o proletariado russo dificilmente conseguiria se manter no poder por muito tempo”, afirma Michael Löwy, pesquisador do Centre National de Recherche Scientifique, em Paris. “No fim, foi o que acabou acontecendo.” Trotski ainda aproveitou o exílio para se casar com sua segunda mulher, Natascha Sedova, militante política que seria sua companheira pelo resto da vida. O casal teve dois filhos: Leon e Sergei – também assassinados, como o pai, por ordem de Stálin.
Réquiem mexicano
Até a morte de Lenin, em 1924, Trotski continuou fazendo parte do governo – sem, é claro, parar de alfinetar com suas idéias, vistas por muitos como de “direita”. Seu principal adversário era Stálin, que logo assumiu o poder. Com o rival no comando, Trotski foi obrigado a sair de cena rapidamente. Mas, mesmo do exílio, continuava aporrinhando o dirigente soviético com seus escritos e seus muitos seguidores. Um dos conceitos mais afiados por ele nesse período foi o de degeneração burocrática, desenvolvido em textos como 1923 – Novo Curso e 1935 – A Revolução Traída, em que defendia a necessidade urgente de uma revolução política na URSS.
Em 1936, Trotski e Natascha instalaram-se no México, com a ajuda do artista plástico mexicano Diego Rivera, marido da pintora Frida Kahlo. Em janeiro de 1937, mudaram-se para a casa dos pais de Frida, que havia sido transformada em uma fortaleza improvisada, repleta de guardas armados, vigias com metralhadoras e janelas emparedadas. O que Rivera não imaginava, contudo, era que o amigo Leon manteria um tórrido caso de amor com Frida. O fato estremeceu a amizade dos dois, obrigando Trotski e Natascha a encontrar outro lugar para morar.
O casal mudou-se, então, para outra fortaleza rigidamente vigiada, de onde o revolucionário continuava a criticar ferozmente o stalinismo. Até que, um dia, Trotski cometeu um erro fatal: deixou o mexicano Ramón Mercader, um suposto admirador, entrar em seu escritório para mostrar-lhe um artigo que havia escrito. Mercader, na verdade, era um agente de Stálin disfarçado. “Pousei o casaco impermeável na mesa, de forma a poder tirar a picareta que estava no bolso”, declarou o mexicano durante seu julgamento. “No momento em que Trotski começou a ler o artigo, tirei a picareta do casaco, segurei-a firme na mão e, de olhos fechados, dei-lhe um golpe terrível na cabeça.” Ferido, as últimas palavras do revolucionário aos seguranças teriam sido as seguintes: “Não o matem. Esse homem tem uma história para contar.” 

Saiba mais

Trotski, Isaac Deutscher, Civilização Brasileira, 2005
São três volumes (O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido) que analisam em detalhes a vida particular e toda a obra política do líder revolucionário.


FONTE: AVENTURA DA HISTÓRIA / Mariana Sgarioni 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A Revolução dos Bichos - George Orwell


A história, desde a expulsão de Jones até a "transformação completa de Napoleão em "humano" durou aproximadamente 6 anos. Na Granja do Solar, situada perto da cidade de Willingdon (Inglaterra), viviam bichos, que como dono tinham o Sr. Jones. 

O Velho Major (porco) teve um sonho, sobre uma revolução em que os bichos seriam auto-suficientes, sendo todos iguais. Era o princípio do Animalismo. O Major morreu, mas mesmo assim os animais colocaram em prática a idéia do líder, fazendo a Revolução dos Bichos.

Depois da Revolução, a Granja passou a se chamar Granja dos Bichos, e quem a administrava era Bola-de-Neve (porco). Bola-de-Neve seguia os princípios do Animalismo, e mesmo sendo superior (em quesitos de inteligência e cultura) em relação aos outros animais, sempre se considerou igual a todos, não tendo privilégios devido à sua condição.

Bola-de-Neve tinha um assistente, Napoleão (porco), que na ânsia pelo poder, traiu o amigo, assumindo a administração da Granja. Napoleão mostrou-se competente e justo no começo, mas depois passou a desrespeitar os SETE MANDAMENTOS, os quais firmavam as idéias animalistas. 

Depois de aproximadamente 5 anos, Napoleão já ocupava a casa do Sr. Jones, bebia álcool, vestia as roupas do ex-dono, andava somente sobre duas pernas e convivia com seres humanos, enfim agia em benefício próprio, instalando um regime ditatorial, dominando e hostilizando os demais animais, considerados seres inferiores e sem direitos. Por essa época, já não era possível distinguir, quando reunidos à mesa, o porco tirano e os homens com quem se confraternizava. Napoleão conseguiu sair vitorioso graças à ajuda de Garganta, porco servil e obediente e que, através de bons argumentos, convencia os animais de que tudo o que acontecia era para o bem deles.

Os SETE MANDAMENTOS do Animalismo eram os seguintes:





1- Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo; 

2- Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo; 

3- Nenhum animal usará roupas; 

4- Nenhum animal dormirá em cama; 

5- Nenhum animal beberá álcool; 

6- Nenhum animal matará outro animal; 

7- Todos os animais são iguais. 

Napoleão, aos poucos, alterou todos os mandamentos. Foi Bola-de-Neve quem escreveu os SETE MANDAMENTOS.

A Revolução dos Bichos é um livro de extrema importância para entendermos o funcionamento de sociedades comandadas por diferentes tipos de governo, além de mostrar de forma genial a ambição do ser humano, o "sonho do poder".

O Senhor Jones era o dono da Granja e, como tal, explorava o trabalho animal em benefício próprio, para acumular capital. Em troca dos serviços prestados, ele pagava com a alimentação, que nem sempre era boa e suficiente. Temos aí o retrato de uma sociedade capitalista: quem mais trabalha é quem menos ganha.

A Revolução que se deu por idéia do "Major", tinha por princípio básico a igualdade; sendo assim, o Animalismo corresponde ao Socialismo, regime em que não existe propriedade privada e em que todos são iguais, e todos trabalham para o bem comum.

A princípio, houve um socialismo democrático, em que todos participavam de assembléias, dando idéias e sugestões, liderados por Bola-de-Neve, bem aceito pelos animais em geral. Napoleão representa o desejo da onipotência, do poder absoluto e, para conseguir seus objetivos, tudo passa a ser válido: mentiras, traições, mudanças de regras.

Tempos depois instaurava-se na Granja uma verdadeira Ditadura, o regime em que não há liberdade de expressão, direito a opiniões etc. Na sede pelo poder e pela riqueza, Napoleão entra em contato com os homens para com eles negociar, comprar, vender, enfim, acumular riquezas e tudo graças ao trabalho dos animais, verdadeiros empregados mal – remunerados, ajudando o "patrão" a ter regalias, bens materiais, capital.

A situação fica mais crítica do que quando Jones era o dono da Granja porque, mais do que nunca, os direitos humanos, ou seja, dos animais foram violados de forma cruel e tendo conseqüências gravíssimas como a morte de alguns, o desaparecimento de outros e muita tortura.

Com base nos fatos ocorridos podemos concluir que a história nos mostra os dois tipos de dominação existentes – a dominação pela sedução: Garganta persuadia os animais com seus argumentos convincentes e eles aceitavam pacificamente as mudanças efetuadas, e a dominação pela força bruta: quem se rebelasse contra as ordens era punido fisicamente, torturado por cães treinados e levados até à morte.

FONTE: WEBCOLA


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Do beliscão ao beijo: uma história dos gestos de amor

Memórias de um Sargento de Milícias (1853), de Manuel Antônio de Almeida, é um dos livros mais famosos e engraçados da literatura brasileira. Nele são contadas as aventuras e malandragens do filho de um casal português que, nas primeiras décadas do século 19, veio morar no Rio de Janeiro. O início do livro mostra como os pais do herói se conheceram: “estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.”
Por incrível que pareça, outros textos mostram que essa descrição não é pura invenção literária. No Portugal do século 18 – e, muito provavelmente, também no Brasil –, o beliscão, como expressão de amor, era bastante difundido. Havia até uma tipologia de beliscões, que variavam de acordo com as circunstâncias. Entre os recém-conhecidos, era de bom-tom beliscar “de pincho”, aplicando levemente a torção sobre a pele. Para os mais íntimos valia o beliscão “de estorcegão”, também conhecido como “enérgico”. A moda era tão corrente que houve quem discutisse a necessidade de construir divisórias no interior das igrejas para impedir belisquinhos e beliscões durante a missa.
Os estudiosos desse gesto associam-no ao “namoro camponês”. Beliscões, pisadas de pé e mútuos estalos de dedos consistiam em rituais que simbolizavam a dura vida rural. No universo camponês das sociedades pré-industriais, o domicílio familiar não significava somente local de vida social, mas também de produção de quase todos os bens do cotidiano. Do alimento às roupas, tudo era produzido pelo casal. Daí os rituais que simbolicamente avaliavam a resistência e força dos noivos.
Ao contrário do que se poderia imaginar, o gesto em nada tinha de sadismo ou maldade – ou não era compreendido dessa forma. Muito menos representava uma atitude machista, pois os beliscões eram compartilhados por homens e mulheres. Talvez a forma mais fácil de entender o que foge à nossa compreensão seja através do contraste com a marca ritual do namoro de nossos dias: o beijo. Tal gesto também tem uma longa história. Durante a Idade Média beijar era uma forma de reconhecer poder. Os nobres, por meio do beijo na boca, selavam pactos com seus vassalos. Aos poucos, trovadores medievais foram se apropriando desse gesto para expressar o amor. E ele passou a significar que, na relação amorosa, a mulher era a suserana e o homem, o vassalo; do pacto senhorial também foi copiado o beijo na mão da amada.







Toda essa tradição irá mudar no século 19, período marcado pela industrialização e urbanização, com o surgimento de novas classes sociais. Os burgueses e proletários dos novos tempos adotaram o “beijo” como forma de expressão do amor. Por quê? Ora, não é de se estranhar que as novas classes dominantes copiassem as atitudes refinadas das elites anteriores. Aliás, isso podia até ser prática, já que, desde fins do Antigo Regime, era comum a união entre homens burgueses e mulheres nobres.

Também conspirava a favor do “beijo” o fato de a família, no século 19, ter deixado de ser um local de produção para se tornar apenas um espaço de convívio social. Aos poucos, os casais refinaram seus rituais amorosos. Isso, com certeza, não ocorreu de uma hora para outra. Nem se difundiu simultaneamente em todas as regiões e grupos sociais. Tornar tais comportamentos um objeto de estudo revela um caso limite do conhecimento do passado: mesmo o gesto mais íntimo de nosso cotidiano, mesmo aquilo que ingenuamente acreditamos pertencer à “natureza humana” sofreu mudanças ao longo do tempo. Descobrir e interpretar essas transformações é fazer da história uma aventura.
FONTE: Aventuras na História / Renato Venâncio

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Conheça a história das comunidades judaicas negras da África


Há quase 30 anos, uma operação do governo israelense deu início à retirada de judeus da Etiópia. Muitos africanos são judeus – e exames de DNA confirmam isso


Em 21 de novembro de 1984, uma operação massiva de transporte humano começava na Etiópia. Envolvendo 28 aviões, mercenários, a CIA e o governo do Sudão, Israel conduzia uma tentativa de retirar todos os judeus da Etiópia.

Os chamados beta israel são também conhecidos por falashas – termo do idioma etíope ghiz que significa estrangeiro. Pertencem a uma das comunidades de judeus negros espalhadas pelo continente africano. Há também os lembas em Zimbábue e na África do Sul, os igbos, na Nigéria, e os ybir ou yeber, na Somália, além de outras tribos em Moçambique, Camarões, Costa do Marfim, Gana e Quênia. Eles já eram conhecidos dos judeus europeus desde o século 19, quando missionários britânicos que viajavam pela Etiópia encontraram as primeiras tribos. Em 1947, foram oficialmente reconhecidos pelos rabinos-chefes de Israel, antes mesmo de o país ganhar sua independência. “Muitos nunca haviam saído de seus vilarejos e se espantaram ao ver um judeu branco”, diz Cecília Ben David, professora de cultura judaica da Casa de Cultura de Israel, em São Paulo.

A Etiópia foi um dos países onde a Guerra Fria foi travada com napalm. Desde 1974, estava em guerra civil, envolvendo o governo revolucionário contra dissidentes e separatistas da Eritreia. Na Operação Moisés (como ficou conhecida, em homenagem ao profeta bíblico), cerca de 8 mil judeus etíopes foram para Israel através do Sudão. No ano seguinte, a Operação Josué retirou mais mil – número pequeno se comparado à Operação Salomão, que levou mais de 14 mil emigrantes para a capital israelense, Tel-Aviv, em 1991, incluindo um Boeing 747 carregando 1 088 pessoas, mais que o dobro de sua capacidade. De 1980 a 1992, cerca de 45 mil judeus etíopes migraram para Israel, que em 2010 já contava com quase 120 mil residentes. Apenas 8 mil deles continua na Etiópia.

A origem dos judeus negros não está clara e se mistura com a mitologia bíblica. A família real etíope, deposta pelos revolucionários em 1974, dizia-se descendente de Makeda, a rainha de Sabá, com o rei Salomão, de Israel (que na Bíblia aparecem conduzindo relações meramente diplomáticas). Os nobres etíopes se converteram ao cristianismo no século 4 d.C., enquanto os beta israel se diziam remanescentes dessa relação entre realezas.

Se a origem de algumas tribos é mitológica, a de outras têm comprovação científica. É o caso dos lembas, que tiveram sua origem semita comprovada por DNA numa pesquisa de 2010, liderada por Tudor Parfitt, professor de estudos judaicos modernos da Universidade de Londres, na Inglaterra, e autor do livro As Tribos Perdidas de Israel – A História de um Mito. Segundo o pesquisador, são descendentes dos cohanim, uma família de sacerdotes judeus da tribo israelita de Levi. Pelos estudos, o ancestral comum de ambas as tribos viveu entre 2 600 e 3 100 anos atrás.

“Eles alegavam ser de uma das tribos perdidas de Israel e traziam um objeto sagrado, semelhante a uma arca, que seus sacerdotes guardavam zelosamente. Com a ajuda de uma equipe de Oxford, constatei que o objeto era de 1350”, afirmou Parfitt em entrevista publicada no site da SOAS (sigla em inglês para School of Oriental and African Studies ou Escola de Estudos Orientais e Africanos, da mesma universidade para a qual trabalha).

A arca se referia a um barco do clã buba, que também compartilha dos mesmos ancestrais dos cohanim. Outra pesquisa feita por Parfitt concluiu que grande parte das comunidades judaicas ao redor do mundo vêm do Levante, isto é, do atual território de Israel e vizinhanças. A única exceção são os etíopes, que não teriam raízes israelitas. “Sua forma de judaísmo foi uma das que se desenvolveram no país. Ou seja, os judeus não foram para a Etiópia em tempos antigos, mas o judaísmo sim”, disse.

Nos Estados Unidos há judeus negros que migraram na 2ª Guerra. Não há registros de tribos no Brasil, mas eles provavelmente foram trazidos para cá durante a escravidão. “Tantos cristãos-novos (judeus convertidos) de Portugal foram parar em alto mar após as perseguições da Inquisição que é provável que muitos tenham chegado aqui, assim como em Guiné, Congo e Angola, onde era menor o alcance inquisitorial”, diz Glasman.

Saiba mais
Livro - The Lost Tribes of Israel - The History of a Myth, Tudor Parfitt, 2003, Phoenix
FONTE: AVENTURAS DA HISTÓRIA / Lidiane Aires

Os fenícios e sua importância para o comércio


A partir do Líbano, os fenícios dominaram o comércio do Mediterrâneo por séculos. Em Cartago, descobriram a guerra. Fundaram um império, mas acabaram erradicados da História


Por mais de mil anos, os fenícios foram o shopping center ambulante da Antiguidade. Se algo pudesse ser vendido, eles vendiam: vinho, azeite, móveis, joias, ferramentas, armas, tecidos, peles, escravos e, por uma taxa especial, seus serviços como os melhores marinheiros do mundo. Entre 1200 a 730 a.C., sua rede conectava povos da Inglaterra até a Grécia e com ela também viajou sua grande invenção: o alfabeto, que deu origem ao grego, latim, hebraico e árabe.


Os fenícios originais não eram muito de guerra – preferiam fundar colônias com a permissão dos habitantes locais, sem avançar para o interior. Mas uma colônia fenícia mudou tudo: Cartago se tornou um verdadeiro império, e por pouco não pôs abaixo o futuro Império Romano. Como a criatura superou o criador e como ambos foram varridos da História é o que veremos a seguir.

Fenício? Que fenício?

Originários do que é atualmente o Líbano, a própria geografia empurrou os fenícios para o mar. A cadeia de montanhas que forma o monte Líbano limita a habitação humana à costa. Ao sul e ao norte, impérios bloqueavam o caminho. Partindo das cidadesestado de Tiro, Sidon e Biblos, as primeiras colônias foram em ilhas próximas, como Chipre e Malta. 

Aliás, não existia isso de “fenício” para os próprios fenícios. “A Fenícia não existiu como entidade política unificada até os romanos fazerem uma província com esse nome, milhares de anos depois”, afirma o historiador Richard Miles, da Universidade de Sidney, na Austrália. O nome vem do grego e era um apelido: a palavra phoinix quer dizer algo como “os roxos”, por causa de um dos seus principais produtos, os tecidos tingidos de roxo. “Eles provavelmente chamavam a si próprios de cananeus. Foram os gregos que os agruparam como fenícios”, diz Miles.

Canaã designava mais que apenas as terras dos ditos fenícios, era toda a região entre o sul da Síria e a Palestina, habitada também por outros povos, como os hebreus e os filisteus – cuja história, de fato, se confunde com a deles. “Até 1200 a.C., não havia diferença entre a história das cidades do litoral e do interior. Ou seja, nós temos uma civilização sírio-palestina, não fenícia. É só com a independência das cidades-estado (que já existiam) que começa a história fenícia propriamente dita”, afirmou o historiador italiano Sabatino Moscati (1922-1997) em The Phoenicians (sem tradução).

O que fez surgir o comércio fenício foi o chamado colapso da Idade do Bronze, que ocorreu por volta de 1200 a 1100 a.C.. Por motivos não muito claros, grandes civilizações como egípcios, gregos micênicos e hititas entraram em rápida decadência. O vácuo de impérios permitiu às cidadesestado uma independência inédita, que propiciou o surgimento de sua rede comercial. No começo, os fenícios ofereciam os produtos de sua própria região para os vizinhos: madeira de cedro-do-líbano, o mesmo material do qual seus barcos eram feitos, e tecidos pintados com extrato dos caramujos do gênero Murex, de um púrpura belo e intenso.

Conforme novos povos entravam em sua rede comercial, os fenícios os apresentavam a produtos de outros povos que conheciam. Assim eles passaram a vender vinho grego aos egípcios, e papiro egípcio aos gregos – a palavra “byblos” passou a significar “papiro” em grego por que eram os comerciantes de Biblos que os supriam com o material. Com o tempo, “biblos” passou a querer dizer também o conteúdo do papiro, isto é, o livro – daí as palavras biblioteca e Bíblia.

Dependendo de remos quando o vento não ajudava, os navios fenícios não tinham muita autonomia e faziam rotas próximas à costa, com paradas constantes. Assim, eles estabeleceram mais de 300 colônias, normalmente meras vilas costeiras de menos de mil habitantes. Essas vilas não eram possessões coloniais no sentido moderno – eram estabelecidas com o consentimento dos moradores da região e não tinham zona rural, dependendo dos locais para suprir-lhes alimentos. Era mais um free shop que colônia, num modelo que os portugueses repetiram 2 mil anos depois com suas feitorias asiáticas.

A grande exceção ao modelo fenício era Cartago, que tinha territórios no interior, e passou a ser o entreposto principal. Localizada na atual Tunísia, ficava no meio do caminho para as rotas que vinham da Espanha, e próxima da Sardenha e Sicília.

O preço da paz

A independência e prosperidade vinham a um custo – em espécie. O método fenício de sobrevivência era basicamente pagar pela paz. Sem um grande exército e sem qualquer aliança durável entre as cidades-estado, eles sobreviviam por causa de sua conveniência para os impérios vizinhos. Com a imensa fortuna de sua rede de comércio, aplacavam a ira dos conquistadores com tributos. Assim eles sobreviveram ao novo reino do Egito (1550-1069 a.C.) e o reino de Israel (1030-930 a.C.), que os tornaram vassalos – “protegidos” mediante pagamento.

A paz fenícia aguentou até o Império neo-assírio (934-604 a.C.), que aceitou seus acordos por alguns séculos. Na década de 730 a.C., no entanto, o rei Tiglate-Pileser 3º invadiu e conquistou Tiro, então a cidade fenícia mais próspera. Tiro não foi destruída, mas perdeu muito de sua autonomia. À conquista dos assírios, se seguiriam a dos persas sob Ciro 1º (539 a.C.) e a dos macedônios de Alexandre Magno (332 a.C.), que arrasaram a cidade. Nada restaria da Fenícia original, exceto sua maior criação: Cartago.

Fundada em 814 a.C., Cartago começou a receber migrantes do Oriente Médio conforme a situação piorava, e tornou-se independente em 650 a.C. Em 308 a.C., virou república. Cartago aprendeu uma lição com sua antiga metrópole: dinheiro não podia comprar a paz indefinidamente. O Império Cartaginense venceu uma série de guerras contra os gregos, entre 480 e 275 a.C. A última dessas guerras, chamada Guerra Pírrica (280-275 a.C.), acabaria tendo um custo inesperado. Ela tornaria seus aliados, os romanos, em inimigos mortais.

Cartago deve ser deletada

Os romanos saíram da guerra confiantes em sua capacidade militar, e menosprezando a dos cartaginenses, que tiveram várias derrotas. Sob o pretexto de uma aliança com um grupo de mercenários, os romanos declararam guerra a Cartago em 264 a.C., iniciando a 1ª Guerra Púnica. Roma venceria, ficaria com a Sicília, e cobraria tributos. Para pagar tais impostos, os cartaginenses expandiram seu domínio na Espanha pela via militar, tomando cidades dos celtas locais.

Um desses locais era Saguntum, cidade protegida por Roma. Assim começou a 2ª Guerra Púnica (218-201 a.C.). Sob o comando de Aníbal Barca, e com o apoio de aliados africanos, a guerra começou com um surpreendente ofensiva cartaginense em que os exércitos cruzaram os Alpes com elefantes de guerra e impuseram várias derrotas aos romanos. Mas a guerra se prolongou demais, e terminou em outra derrota de Cartago, que perdeu a Espanha e se tornou um estado cliente de Roma.

Os sentimentos de vingança pela quase derrota nunca foram esquecidos. A 3ª Guerra Púnica (149-146 a.C.) foi simplesmente o massacre de Cartago. A frase delenda est Cartago (Cartago deve ser destruída) vem dos discursos do senador Cato para convencer os romanos a “deletar” a cidade. E deletada ela foi. A população foi escravizada, a cidade, queimada, e a história dos fenícios, apagada.

Quase tudo o que sabemos sobre eles vem dos gregos e romanos, porque seus textos em papiro não resistiram a tantas depredações. Um fim tragicamente irônico para o povo que inventou o alfabeto.

Grandes ideias, grandes negócios

Para se tornarem os donos do Mediterrâneo, os fenícios fizeram uso de diversas inovações, a maioria delas relacionada à tecnologia naval. Os navios de guerra usados pelos romanos e gregos eram basicamente uma criação fenícia. Foi deles a ideia de construir um navio a partir de um esqueleto posto numa doca seca, a partir da quilha central, outra invenção sua. Seus navios foram os primeiros a ter leme. Também foram eles que tiveram a ideia de distribuir os remadores em duas linhas, criando a birreme, que depois ganharia mais uma linha, tornando-se a trirreme. Esses eram navios de guerra, os remadores extras davam velocidade em manobras de abalroagem, bater em outro navio para afundá-lo, que se tornou a principal forma de guerra naval na época. Os navios de transporte usavam principalmente velas. Mas a criação fenícia mais duradoura é o alfabeto, do qual deriva o nosso. Usar letras para passar sons, e não ideias, como nos hierogrifos, foi uma simplificação revolucionária.

Globalização antiga

A rede comercial dos fenícios abrangia desde a Inglaterra até a Grécia, país com o qual concorriam no comércio, mas que também era um de seus maiores clientes. O comércio era em grande parte escambo — trocavam os produtos locais pelo que estivesse carregando. Na Espanha, montaram toda uma rede de beneficiamento de metais, que se transformavam em joias e ferramentas em Tiro e Sidon.

Carthage Must Be Destroyed: The Rise and Fall of an Ancient Civilization, Richard Miles, 2010, Penguin Books
FONTE: Aventuras na História /  Fábio Marton