Mesmo mais organizados e com uma legislação favorável, o ataque aos direitos dos povos autóctones continua. À frente está um novo ciclo de obras na Amazônia
Os coloridíssimos adereços sobre a cabeça, nos pulsos e no pescoço evidenciavam ainda mais a pele morena e os cabelos negros de Sônia, 38 anos. Ela tomou o assento, diante de uma plateia de jornalistas, e começou seu discurso, num português bem articulado. Em dez minutos, desfiou números de leis, tratados e decretos e denunciou: os povos indígenas continuam sendo atropelados pelo modelo de desenvolvimento do Brasil.
Era dezembro de 2012, nono dia da Conferência da ONU sobre mudanças climáticas (COP-18) no Qatar. Antes de pegar o avião e encarar mais de 10 mil quilômetros de volta à sua casa, na Amazônia brasileira, Sônia Guajajara cumpriu uma última tarefa. Entrou em sua conta no Facebook e informou a seus milhares de seguidores como fora a coletiva de imprensa. “Agora preciso ir para o aeroporto para voltar ao nosso querido Brasil”, pediu licença aos amigos virtuais.
Nascida em Amarante, sul do Maranhão, Sônia Guajajara é uma índia. Mas não só isso. É técnica em enfermagem, bacharel em letras, pós-graduada em educação especial e com especialização em gestão ambiental. Mas é, principalmente – ela frisa – uma liderança indígena, com características cada vez mais comuns. Foi à frente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) que ela viajou para a COP-18 – e para as três conferências da ONU anteriores.
Com 23 anos de estrada e abrangendo associações dos nove estados da Amazônia, a Coiab é a maior organização indígena do Brasil: representa cerca de 430 mil pessoas. “O que tentamos fazer é ecoar a nossa voz para o mundo, dando visibilidade à nossa riqueza cultural e denunciando a violência e o desrespeito aos nossos direitos”, admitiu Sônia, em entrevista à Revista de História.
A dupla violência e desrespeito contra os índios parece ter voltado com força nos últimos anos. O norte do país voltou a ser uma de suas principais fronteiras de desenvolvimento. “Os grandes projetos iniciados na onda de colonização da Amazônia no governo militar nunca foram abandonados completamente”, sublinha o procurador da República no Pará, Felício Pontes.
A usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, é o exemplo mais evidente disso. Concebida nos anos 1970 e batizada de Kararaô, ela mudou de nome e de desenho para ressurgir na última década como principal obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Belo Monte vai impactar, direta ou indiretamente, 24 etnias. Mas o projeto é apenas um de tantos. Há outras 22 hidrelétricas planejadas em rios amazônicos nos próximos dez anos.
Ao menos o arcabouço legal sofreu modificações radicais: com a Constituição de 1988, pela primeira vez na história eles tiveram reconhecidos o direito à sua cultura e aos seus territórios tradicionais.Não há número oficial sobre os impactos desses projetos. Mas o cientista social da Universidade de Brasília (UnB), Ricardo Verdum, publicou estudo com um balanço preliminar: pelo menos 43 empreendimentos do PAC irão afetar um ou mais territórios indígenas. E, segundo ele, mais de 650 solicitações de licença já foram encaminhadas à Fundação Nacional do Índio (Funai) para atividades no interior ou nos arredores dessas áreas. Tudo isso significaria afetar milhares de pessoas.
“Antes, a política era de assimilar os indígenas, violentando seus modos de vida e transformando-os em ex-índios”, explica o procurador.
O slogan usado pelos militares na década de 1970 – “Terra sem homens para homens sem terra” – ilustra bem a fala de Pontes. Ignorando a presença de povos tradicionais, o governo jorrou um rio de recursos e incentivos para ocupar a região. Foi o gatilho: a devastação da floresta e os conflitos com as comunidades que já viviam ali começaram para não ter mais fim.
“Quando se iniciou a abertura das grandes rodovias, como a Transamazônica, o Estado brasileiro não tinha a menor ideia do que iria encontrar pela frente”, diz Marcio Santilli, que já foi presidente da Funai e é um dos fundadores do Instituto Socioambiental. “O contato com os indígenas se deu da pior forma, com invasão de terras, introdução de doenças ou mesmo na bala, quando isso se fez necessário naquela lógica da ocupação.”
O conjunto de grandes obras espalhou violência e conflitos de terra por toda parte. Os indígenas muitas vezes tiveram seu deslocamento forçado, com dispersão de seus grupos para territórios com os quais não tinham qualquer relação histórica. Vários grupos foram levados para as chamadas reservas indígenas, sem qualquer análise étnica. Isso foi possível porque em todas as Constituições anteriores à de 1988 os índios eram definidos como figuras transitórias que, cedo ou tarde, seriam “incorporados à comunhão nacional”.
“Antes de 1988, não havia o reconhecimento das terras indígenas”, conta Marcio Santilli, do Instituto Socioambiental. “A política era tirar os índios do caminho e botar em um gueto, onde se misturavam diferentes grupos, às vezes até inimigos entre si. Era um depósito de índio.”
Com a confusão instalada, começaram a surgir os primeiros sinais de uma resistência mais ampla e integrada. “A organização dos povos indígenas foi, e ainda é, questão de sua própria sobrevivência. Em outras palavras: ou se organizam ou são condenados ao desaparecimento”, constata dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu e presidente do Cimi.
Criado em 1972, o organismo vinculado à Igreja Católica apoiou vários grupos na realização das Assembleias Intertribais iniciais, nas quais lideranças de diferentes povos se reuniam pela primeira vez para identificar os problemas comuns e encaminhar soluções.
Não demorou para que essas vozes cruzassem as fronteiras nacionais. “Em certo momento, as lideranças começam a conversar com outros grupos indígenas no continente e mesmo além do continente. Este aspecto é fundamental: eles driblam a relação de dependência e tutela com o Estado brasileiro para se articularem com movimentos internacionais de direitos humanos”, analisa.As lideranças ganharam visibilidade, criaram a União Nacional Indígena (UNI) e passaram a circular em novos cenários. “Eles começaram a transitar em circuitos urbanos, acadêmicos, governamentais e a construir propostas bastante arrojadas para todas as populações indígenas”, explica o historiador da Unicamp, John Monteiro, apontando uma novidade importante: “Eles não eram mais um cacique local apenas. Eram um novo tipo de liderança, supracomunitária, que em vez de discutir sobre um território específico, levantava discussões mais amplas sobre direitos humanos, territoriais”.“Não somos nós que definimos o que é bom para eles. Queremos ajudá-los para que não percam sua cultura, sua língua, seu modo de viver e, de modo especial, suas terras”, explica dom Erwin. O teólogo Egydio Schwade também acompanhou de perto esse processo. “Com a costura do Cimi e de outras entidades, os índios reuniram-se e começaram a retomada dos territórios, inclusive dos ocupados por invasores”, diz Schwade.
Foi nessa época também que uma notícia veio à tona: o aumento dos povos que se reconheciam como índios. A descoberta veio na década de 1970, quando surgiram as primeiras informações mais concretas sobre as populações indígenas em solo nacional. O Centro Ecumênico de Documentação e Informação teve papel fundamental: publicou a primeira lista de povos, de terras e línguas, reunindo informações coletadas por missionários e antropólogos espalhados pelo Brasil.
Foi esse caldeirão de movimentos que tornou o terreno propício para uma guinada na política indigenista do país. Com o fim da ditadura e a instalação da Constituinte, em 1987, lideranças indígenas pintadas de guerra e organizações de apoio se misturavam nas galerias do Congresso Nacional, dia e noite, para garantir que novos direitos fossem assegurados. E eles foram.
“Esse momento é o divisor de águas. Pela primeira vez, uma Constituição pressupõe que os índios farão parte do futuro do país”, pontua John Monteiro. A partir daí, o número de organizações geridas pelas próprias lideranças se multiplica. E os territórios tradicionais passam, finalmente, a ser reconhecidos pelo Estado.
O novo panorama legal, porém, não impede que velhos problemas continuem ameaçando esses povos, como lembrou Sônia Guajajara na conferência da ONU sobre o clima. “Se antes lutávamos para ter nossos direitos, hoje lutamos para não perdê-los”, diz.
Um dos campos de batalha se dá no próprio Congresso Nacional, onde uma penca de projetos de lei e pelo menos duas emendas constitucionais tentam reduzir os direitos adquiridos pelos indígenas e abrir brechas para que empreendimentos de todo tipo possam avançar sobre as áreas tradicionais protegidas.
Mas o front da guerra – que, por vezes, continua derramando sangue – está além das fronteiras de Brasília. Segundo Felício Pontes, o avanço dos grandes projetos segue sem que as comunidades afetadas sejam ouvidas, como prevê a legislação. “No caso das hidrelétricas, a consulta aos povos não ocorreu”, ele garante, o que resultou, no que diz respeito a Belo Monte, em uma das mais de 50 ações na Justiça contrárias à obra.
Enquanto a conversa oficial não é feita com as comunidades, uma extraoficial costuma ser levada a cabo, segundo as organizações indígenas. “Para fazer avançarem seus interesses, as empresas e os governos têm oferecido dinheiro, barcos, moto, carro”, lista Sônia Guajajara. “E pela necessidade e carência de políticas públicas, alguns acabam aceitando”.
Mas se os ataques contra os direitos indígenas mudaram, as armas para defendê-los também estão mais sofisticadas. Não é por acaso que Sônia acumula títulos acadêmicos. “As lideranças perceberam que precisam se capacitar, e cada vez mais elas frequentam cursos universitários”, diz o historiador Monteiro. Sônia ratifica: “A gente tem necessidade de estudar para poder contribuir mais com a luta, com meu povo”.
Não é à toa, também, que ela faz questão de atualizar sua página no Facebook com as novidades da batalha. “As redes sociais têm sido um grande aliado, pois conseguimos fazer denúncias, convocatórias para mobilizações, fóruns de discussões...”, explica.
Monteiro concorda: “Os movimentos étnicos surgem com muito mais força quando são potencializados com a possibilidade de comunicação global, com a criação de redes sociais mais amplas e imediatas”, ele diz. E para exemplificar, cita o caso dos índios guaranis-kaiowás, do Mato Grosso do Sul, que prestes a serem despejados de suas terras no fim do ano passado, ganharam adesão de milhares de brasileiros no Facebook e no Twitter, ao terem uma carta deles divulgada nas redes.
Sônia tem consciência de que muita gente olha torto quando vê um índio atrás de um computador. Mas ela parece ter ainda mais consciência de suas raízes e de seus objetivos: “Ser indígena não é simplesmente andar pintado, com pena, morando no mato. É também participar da construção das políticas e dos espaços de tomada de decisões”, ela avisa aos desavisados. Monteiro completa: “Quanto mais os índios se aproximarem, participarem e se incluírem, mais teremos índios”.
FONTE: REVISTA DE HISTÓRIA
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