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quarta-feira, 20 de junho de 2012

1792 - Sans culottes fazem primeira investida contra o regime de Luis XVI

Nova política religiosa suscitava violenta oposição nos centros urbanos e no campo, onde a grande massa dos franceses continuava ligada ao clero

No dia 20 de junho de 1792, o rei Luis XVI se vê confrontado com a primeira jornada revolucionária dos sans culottes parisienses – trabalhadores e artesãos que não possuíam culotes, os calções típicos da nobreza.
O conflito entre o povo parisiense e a monarquia estava apenas começando. Suas causas estavam na nacionalização dos bens da Igreja. A nova política religiosa suscitava violenta oposição nos centros urbanos e no campo, onde a grande massa dos franceses continuava ligada ao clero local.
Durante o verão de 1791, dois deputados, Gallois e Gensonné, avaliam in loco a Vendeia e Choletais e constatam que o fervor quase unânime da Festa da Federação (uma celebração comemorativa do primeiro aniversário da Queda da Bastilha) estava bastante desvanecido. Mesmo com a advertência dos dois parlamentares, a nova Assembleia Nacional legislativa convoca todos os padres refratários a prestar juramento. Desta vez o rei procede com seu veto.
Em 1º de fevereiro de 1792, 400 clérigos que não quiseram prestar juramento foram internados em Angers. A lei de 27 de maio de 1792 ameaça de deportação todos os religiosos refratários. O rei veta a medida novamente e a lei é suspensa. Padres se exilam. Muitos se escondem e continuam a praticar os sacramentos fora das igrejas. Outros, sobem ao cadafalso e são guilhotinados.
Mais além, vêm à tona ainda acontecimentos externos. Em 20 de abril de 1792, o rei e a Assembleia Nacional declaram guerra à Austria que, aliada à Prússia, concentra suas tropas na fronteira. A Assembleia vota um decreto visando a formar um contingente de 20 mil voluntários nos muros da capital para defendê-la. Novamente o rei lança seu veto.
O ministro Roland, um jacobino, dirige-lhe uma carta de admoestação. A carta é rechaçada e o rei constitui um novo ministério, composto unicamente por personalidades do Clube des Feuillants, grupo político de tendência monarquista constitucional que se opunha à destituição do rei Luis XVI. Essa foi a gota d’água para os sans culottes, que se agitam nos clubes revolucionários jacobinos.
Em 20 de junho de 1792, exigem que a Assembleia prive o rei de seu direito de veto para depois investir contra o palácio das Tulherias, onde residia a família real. Desafiam o rei Luis XVI bradando “abaixo o veto!”. Pressionam o monarca a cobrir a cabeça com um barrete vermelho e a beber uma taça de vinho “à saúde do povo”. Todavia, Luis XVI não se deixa desmoralizar e não faz qualquer concessão à multidão, que se retira sem ter obtido nada menos que satisfações simbólicas.
Os espíritos se acaloraram. Em 11 de julho, a Assembleia decreta que “a pátria está em perigo” e mobiliza o país diante da previsão de invasão estrangeira. Abre os escritórios de alistamento para recrutar voluntários e reforça os efetivos do exército.
Os voluntários se alistam com entusiasmo relativo, de acordo com cada região. O leste do país está mais mobilizado do que o oeste. Em Paris, os destacamentos da Guarda Nacional percorrem as ruas ao som de marchas militares, precedidos de um estandarte com a seguinte inscrição: “Cidadãos, a pátria está em perigo”.
Apesar do veto do rei, os deputados tomam a liberdade de autorizar os voluntários dos departamentos de invadir Paris, de modo que os marselheses chegam à capital cantando valentemente o Canto de Guerra do Exércitio do Reno, que seria rebatizado de Marselhesa pelos parisienses.
Em 15 de julho, em Coblença, às margens do Reno, o duque de Brunswick, que comandava o exército prussiano, promete em manifesto escrito “submeter Paris a uma execução militar e a uma subversão total, se a família real sofrer o menor ultraje”.
Contrariamente às suas expectativas, a ameaça desencadeia um assomo patriótico dos franceses
FONTE: Opera Mundi

sábado, 16 de junho de 2012

O mito sobre a origem de sobrenomes de judeus convertidos


Nomes de plantas e árvores, como Pinheiro e Carvalho, 
não pertenceram só a cristãos-novos

Na Bahia do século XVII, o professor de um colégio jesuíta perguntou o sobrenome de um de seus alunos. A resposta foi inusitada: “Qual deles, o de dentro ou o de fora”? A história, contada pela historiadora da USP Anita Novinsky em sua dissertação “O mito dos sobrenomes marranos”, exemplifica o dilema dos cristãos-novos brasileiros, nos primeiros séculos do país. Expor ou não o sobrenome da família fora de casa, sob risco de ser identificado pela Inquisição e acusado do crime inafiançável de “judaísmo”? O temor e a delicadeza do tema fizeram com que a genealogia dos descendentes de judeus portugueses no Brasil fosse envolta, por séculos, numa bruma de mitos e ignorância. Nos últimos anos, no entanto, pesquisadores têm revelado surpresas sobre os sobrenomes marranos no Brasil

No final do século XV, os judeus compunham entre 10% e 15% da população de Portugal — somando os cerca de 50 mil locais e os quase 120 mil que cruzaram a fronteira em 1492, quando os Reis Católicos Fernando e Isabela expulsaram toda a população judaica da Espanha. Nos primeiros dois séculos depois do Descobrimento, o Brasil recebeu boa parte dessa população, os chamados cristãos-novos (ou “marranos”, pelo apelido pejorativo da época), convertidos ao cristianismo à força, por decreto de Dom Manuel I, em 1497. Historiadores concordam que um em cada três portugueses que imigraram para a colônia era cristão-novo.

Até recentemente, acreditava-se que esses judeus conversos abandonaram seus sobrenomes “infiéis” para adotar novos “inventados” baseados exclusivamente em nomes de plantas, árvores, frutas, animais e acidentes geográficos. Assim, seria fácil. Todos os portugueses com os sobrenomes Pinheiro, Carvalho, Pereira, Raposo, Serra, Monte ou Rios, entre outros, que imigraram para o Brasil após 1500 devem ter sido marranos, certo? Errado.

— Em minhas investigações, não encontrei prova documental de que nomes de árvores, animais, plantas ou acidentes geográficos tenham pertencido apenas ou quase sempre a marranos — afirma Anita Novisnky, uma das maiores autoridades no assunto.

O que causa confusão, segundo Novinsky, é o fato de que os sobrenomes adotados pelos cristãos-novos eram os mesmos usados por cristãos-velhos, alguns por nostalgia, outros por medo de perseguições. Afinal, no Brasil, os marranos foram perseguidos por 285 anos pela Inquisição portuguesa. Quem demonstrasse apego à antiga religião poderia ser condenado à morte na fogueira dos “autos de fé”, as cerimônias de penitência aos infiéis.

Como identificar, então, quem era marrano? A mais importante pista está justamente nos arquivos da Inquisição. Aproximadamente 40 mil julgamentos resistiram ao tempo, 95% deles referentes a crimes de judaísmo. Anita Novinsky encontrou exatos 1.819 sobrenomes de cristãos-novos detidos, só no século XVIII, no chamado “Livro dos Culpados”. Os sobrenomes mais comuns dos detidos eram Rodrigues (citado 137 vezes), Nunes (120), Henriques (68), Mendes (66), Correia (51), Lopes (51), Costa, (49), Cardoso (48), Silva (47) e Fonseca (33).

— A Inquisição anotava todos os nomes dos detidos cuidadosamente, como se fosse a Gestapo nazista e mantinha uma relação de bens de cristãos-novos para confiscar — diz Anita.

Isso não quer dizer, no entanto, que todas as famílias com esses sobrenomes eram marranas. Nas investigações, sob tortura, os detidos diziam tudo o que os inquisidores queriam ouvir, acusando vizinhos, empregados e parentes “inocentes”. Fora isso, os sobrenomes eram realmente comuns.

— Não havia nenhum sobrenome exclusivo de cristãos-novos. Até porque eles mudavam sempre que podiam, além de adotarem nomes compostos. Muitos irmãos e esposos adotavam até mesmo sobrenomes diferentes, só para confundir — explica o historiador israelense Avi Gross.

O historiador paulistano Paulo Valadares, autor do “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”, no qual destaca 14 mil sobrenomes oriundos de judeus da Península Ibérica, aponta para mais uma complicação: o da mestiçagem brasileira. A grande maioria dos cristãos-novos se misturou depois de uma ou duas gerações com outras culturas e raças.

— Poucos conseguiram manter as tradições judaicas por muito tempo. Algumas famílias tentaram, se isolando em algumas áreas do país, principalmente no Sertão nordestino, e praticando a endogamia (casamentos dentro da família).

Para os aficionados em genealogia, um novo site na internet, o “Name your roots” (que tem versão em português), pode ajudar a descobrir as raízes. No portal, criado há três meses por dois religiosos israelenses, é possível obter explicações e bibliografia gratuitamente sobre sobrenomes marranos comuns no Brasil.

Mas Paulo Valadares alerta que é preciso ir além: identificar se há antepassados portugueses que chegaram ao Brasil nos séculos XVI ou XVII ou se foram citados nos anais da Inquisição até o século XVIII, se a família se estabeleceu em alguma região específica e se guarda tradições “estranhas”. O documentário “A estrela oculta do Sertão”, de Elaine Eiger e Luize Valente, traz exemplos de algumas dessas tradições, que ainda sobrevivem no Nordeste: olhar a primeira estrela no céu, não comer certos alimentos como carne de porco, não misturar carne com leite, vestir a melhor roupa na sexta-feira, enterrar corpos em “terra limpa” (envolto apenas numa mortalha), rezar numa língua estranha e colocar pedras em túmulos.

— Depois de conviver com comunidades do interior do país, percebi como os descendentes de marranos praticam tradições judaicas no dia a dia — conta Luize , que lança, em agosto, o romance “O segredo do oratório” (Record), contando a saga de uma família de cristãos-novos no Brasil.

O médico paraibano Luciano Canuto de Oliveira, que voltou ao judaísmo depois de descobrir suas origens marranas, define sua identidade de modo parecido com a resposta do aluno do colégio jesuíta, há quatro séculos: “Ser marrano é ser judeu por dentro e católico por fora”.

FONTE: O GLOBO

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Saiba mais sobre a busca dos portugueses por especiarias no século 16


No século 16, os portugueses buscaram e 

conquistaram as terras que alimentavam

 a Europa com especiarias

Em 10 de agosto de 1511, em uma península no meio do oceano Índico, a mais de 20 mil quilômetros de sua terra natal, marinheiros portugueses prenderam um junco chinês no meio de uma ponte. De lá, atiravam para as duas margens. Eram 1,2 mil, contra 20 mil nativos. E os defensores locais não eram como os que espanhóis e portugueses enfrentavam nas Américas: estavam armados de canhões e mosquetes - e contavam com elefantes de guerra.


A ponte cruzava o rio que divide a cidade de Malaca, na atual Malásia, um sultanato muçulmano comandado por Mahmud Shah (1488-1528). A cidade, um dos portos mais ricos da Ásia, recebia navios persas, árabes, chineses e japoneses. Por ali passava o comércio vindo das chamadas Ilhas das Especiarias (veja na pág. 56), que chegava ao Oriente Médio e de lá rumava para a Europa pelas mãos dos venezianos, os rivais comerciais da emergente potência portuguesa.

O ato era uma dupla vingança. Dois anos antes, os portugueses haviam tentado estabelecer relações comerciais com o sultão por meio de uma expedição saída da Índia sob o comando de Diogo Lopes de Sequeira. O sultão tentou assassiná-los, mas eles descobriram o plano e fugiram a tempo. A outra vingança era parte de uma grande estratégia contra os muçulmanos em geral, uma antipatia que remontava ao tempo da Reconquista Ibérica, no século 14. "Os portugueses vinham com a ideia de uma cruzada, acabar com o poder muçulmano não só ali c omo também na Indonésia -, afirma Geraldo Affonso Muzzi, ex-embaixador brasileiro na Malásia, autor de Os Portugueses na Malásia. "A mentalidade hispano-portuguesa era a mesma. Era, de certa forma, uma vingança.

A má recepção malaia não era fruto apenas de diferenças religiosas. Ela dizia respeito à fama dos portugueses: com frequência, seus pedidos por contatos comerciais terminavam em desastre. Calicute, na Índia, foi contatada por Vasco da Gama em 1498. Em 1500, a esquadra de Pedro Álvares Cabral estacionou por lá como o destino final de sua viagem, que, de passagem, descobriu o Brasil.
Alegando privilégio comercial pelos acordos firmados com Vasco da Gama, Cabral tomou um navio dos comerciantes árabes, que responderam com uma revolta da população, massacrando 70 portugueses, inclusive o autor da Carta do Descobrimento do Brasil, Pero Vaz de Caminha. Cabral respondeu com um bombardeio de 24 horas, matando 600 pessoas e arruinando a cidade, ao que se seguiu uma guerra que ainda continuava quando os 1,2 mil portugueses atiravam do meio do rio naquele 11 de agosto. Outras cidades, como Mascate (Omã, 1507), Ormuz (Irã, 1507) e Goa (Índia, 1510), tiveram destino diferente. Não houve nem tentativa de diplomacia. Caíram pelo pesado braço armado da marinha portuguesa, a frota do "leão do mar - Alfonso de Albuquerque.


Era Albuquerque quem estava no meio do rio, em sua nau Frol de la Mar, com mais 17 navios. A reação dos malaios foi mandar os elefantes de guerra. Os portugueses usaram lanças para repeli-los, atingindo-os nos olhos. Os elefantes, desesperados, voltaram em estouro na direção do próprio exército, causando o caos. Os portugueses asseguraram sua posição na ponte e passariam as duas semanas seguintes estacionados lá, trocando fogo dos canhões de seus navios com os 2 mil canhões malaios nas margens do rio.

"Uma das chaves do sucesso da implantação portuguesa na Ásia foi a superioridade militar, verificável nos domínios da construção naval, das táticas de guerra marítima, qualidade da artilharia e até do recurso a armaduras pessoais -, diz a historiadora Alexandra Pelúcia, da Universidade de Lisboa. Os malaios tinham mais canhões e mosquetes, mas eram armas ultrapassadas, algumas atirando projéteis de pedra, obsoletos na Europa havia 200 anos.

Acreditando na derrota, os comerciantes de Malaca - que eram, compreensivelmente, a classe mais influente do lugar - começaram a pressionar o sultão a render-se. O soberano resistiu, mas as tropas, desmoralizadas e desorganizadas, ofereceram pouca resistência quando os portugueses partiram da ponte para os dois lados da cidade, em 24 de agosto. O sultão fugiu e a corte continuou no exílio, juntando aliados para ataques periódicos (e frustrados) aos portugueses pelo século que se seguiu.

Malaca foi saqueada. Ouro, especiarias e até um elefante branco foram embarcados para a Europa. O elefante, chamado Hanno, foi dado de presente ao papa Leão 10 em sua posse, em 1514 - o papa e os italianos adoraram o presente, mas o bicho só viveu dois anos. O saque de Malaca não foi total. A coroa portuguesa tinha planos para a cidade, e esses planos dependiam de ela não estar em ruínas. O primeiro ato dos portugueses foi construir um forte, cujo portão ainda hoje é atração turística. A seguir, enviaram uma missão diplomática ao reino de Sião (na atual Tailândia), com o que conseguiram iniciar seu projeto mais ambicioso: Sião deu aos portugueses as coordenadas e a permissão para aportarem nas Ilhas das Especiarias. Com manobras diplomáticas e militares, conquistaram ou transformaram em vassalos Ternate, Maçácar e Timor - a última permaneceu como colônia até a independência, em 2002.

As ilhas, conhecidas como "das especiarias" tanto por portugueses quanto por chineses, são o arquipélago das Molucas, situadas na atual Indonésia, a cerca de 1 000 km a leste da península malaia. Eram a única fonte mundial de noz-moscada e cravo, as especiarias mais caras entre todas.

Meio quilo de noz-moscada era capaz de comprar 7 bois na Europa. Os cravos valiam mais ou menos seu peso em ouro. Com o controle de Mascate, Ormuz, Goa, Malaca e das Ilhas das Especiarias, os portugueses esperavam dominar todo o comércio no oceano Índico, mas o plano começou a fazer água pouco depois da conquista de Malaca. O sultanato era protegido da dinastia Ming, da China. E os chineses responderam com hostilidade - mais ainda por causa de relatos de portugueses atuando como piratas ou sequestrando crianças chinesas para torná-las escravas em Malaca. Missões diplomáticas e caravanas comerciais portuguesas foram aprisionadas, torturadas e mortas. Em 1521 e 1522, nas batalhas de Tamão, juncos chineses botaram para correr as caravelas portuguesas, que haviam estabelecido um forte na região (hoje Tuen Mun, em Hong Kong). Os capturados foram usados como reféns, exigindo a reinstalação do sultão Mahmud Shah. Diante da recusa portuguesa, foram esquartejados.

Na Europa, outras más notícias: em 1522, a expedição do português Fernão de Magalhães voltou ao continente, após dar a volta ao mundo, passando pelas Ilhas das Especiarias. Magalhães, um veterano da conquista de Malaca que caiu em desgraça com os nobres portugueses, estava a serviço dos espanhóis. Sua expedição foi um desastre. Apenas 18 dos 237 homens que saíram chegaram vivos à Espanha, baixas que incluíam o próprio Magalhães, morto em combate em 27 de abril de 1521, nas Filipinas. Mas os espanhóis perceberam uma oportunidade: o Tratado de Tordesilhas (1494), pelo qual Espanha e Portugal dividiram o mundo entre si, tinha um defeito grave: não levava em conta que o mundo é redondo.

Os espanhóis clamaram para si as Molucas. Se o mundo fosse dividido em dois hemisférios a partir da linha de Tordesilhas, as ilhas estariam à leste da área portuguesa. No mesmo ano de 1522, os espanhóis instalaram um forte em Tidore. Os portugueses enviaram forças contra eles e tomaram Tidore no ano seguinte. Seguiu-se uma década de conflitos, só resolvidos no Tratado de Saragoça, de 1529, que entregou as Filipinas aos espanhóis e as Molucas à Lisboa.

Portugal conquistaria a paz com os chineses na década de 1540, ajudando-os a vencer piratas japoneses na região, o que resultou na cessão de Macau em 1557. A paz foi bem-vinda, mas as guerras e os embargos fizeram seu estrago: os árabes passaram a usar outras rotas, evitando Malaca, para levar especiarias aos parceiros venezianos. Os produtos da China, como seda e canela, ficavam vedados aos portugueses.

O plano do monopólio foi um fracasso. E o grande ardor militar português acabaria enterrado no deserto do Saara, em 1578, com o desaparecimento do rei dom Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir, que levou o país a perder sua independência para a Espanha entre 1580 e 1640. Em 1641, as combalidas forças portuguesas perderam Malaca para tropas combinadas de holandeses e do sultanato de Johor, da Malásia. Em 1824, a região passaria para os ingleses por meio de um acordo - e conquistaria sua independência, com o resto da Malásia, em 1946.

Resta uma curiosa colônia na Malásia, em um bairro português que mantém seu orgulho étnico na cidade. Os malaio-portugueses (que também têm holandeses e ingleses na mistura) são católicos, falam entre si um estranho dialeto chamado kristang, tocam músicas parecidas com o fado e sua cozinha inclui porco, proibido aos muçulmanos, o grupo dominante no país. Os malaio-portugueses já sobreviveram como pescadores pobres, mas hoje estão integrados à economia emergente do país: o CEO da Air Asia, maior companhia aérea da Malásia, chama-se Anthony Francis Fernandes.

O que eram as especiarias?

Especiarias são temperos secos, que podiam ser transportados de navio ou caravana por meses sem perder o sabor. Algumas eram conhecidas desde a Antiguidade, através de rotas comerciais que ligavam Egito, Grécia e Roma aos impérios da Índia e China. Com a queda do Império Romano, os europeus tiveram que se conformar com as ervas locais. Além da culinária e perfumaria, as especiarias eram usadas na medicina - durante a epidemia de peste bubônica (1340-1400), médicos acreditavam que uma máscara com flores, perfumes e especiarias tornaria o usuário imune à doença. A partir do século 8, as conquistas islâmicas na península Ibérica e também na Sicília reintroduziram as especiarias na Europa. Quando Jerusalém foi capturada na 1ª Cruzada (1099), nobres europeus de países do norte, que lutavam nos exércitos cristãos, acabaram tomando contato com os temperos, bem conhecidos no mundo islâmico. A partir de então, rotas comerciais começaram a suprir a Europa - mercadores asiáticos levavam as especiarias de navio, da Índia, até suas terras, pelo mar Vermelho, ou por terra, em caravanas cruzando o centro da Ásia até o mar Negro. Mercadores venezianos e genoveses compravam as especiarias em portos árabes, gregos ou turcos e as distribuíam pela Europa. Em 1453, Constantinopla foi capturada pelos turcos do Império Otomano, que continuaram a se expandir ao sul, tomando terras árabes, e tornando-se, assim, um intermediário monopolista para as rotas. Os turcos cobravam impostos exorbitantes sobre as especiarias, levando seu preço às alturas. Isso incentivou portugueses e espanhóis a buscar uma rota alternativa para o Oriente.



Pimenta-do-reino
Especiaria conhecida desde os tempos greco-romanos, perdeu importância com a descoberta da pimenta americana (Capsicum annuum), com a qual não tem parentesco

Nome científico Piper nigrum

Região Índia

Canela
Conhecida desde o Egito antigo e citada na Bíblia, era a especiaria mais comum e barata

Nomes científicos Cinnamomum zeylanicun, Cinnamomum aromaticus

Região Sri Lanka (zeylanicum), China (aromaticus)

Cravo
Extremamente valorizado, o cravo era usado em temperos, incensos, perfumes e até para o tratamento da dor de dente (para o que, de fato, funciona).

Nome científico Syzygium aromaticum

Região Molucas

Noz-moscada
A noz-moscada é a semente de uma fruta parecida com o pêssego. Duas especiarias derivam dela: a noz em si e o macis, tempero vermelho da casca da noz.

Nome científico Myristica fragrans

Região Molucas


Saiba mais

Livro
Os Portugueses na Malásia, Geraldo Affonso Muzzi, Edições Vercial, 2002

FONTE: Aventuras na História / Fábio Marton

terça-feira, 12 de junho de 2012

Os amores de Hitler


Antes de tomar meio mundo à força, Hitler conquistou o apoio e a confiança de militares, industriais e do povo alemão. Em maior ou menor medida, foi aceito e respeitado e, no cenário internacional, amealhou admiradores inclusive entre os mais ciosos defensores das liberdades democráticas. Quem apoiou Hitler? Quem o aceitou? Quem o tolerou? Quem o amou? E – a pergunta mais inquietante – por quê?
Amar é gostar muito. É o sentimento intangível de desejar o bem de outra pessoa e de dedicar-lhe afeto. Pode chegar a um estado extremo de devoção ou ser apenas uma inclinação profunda a um valor, ou a alguma coisa que proporcione prazer, entusiasmo ou satisfação. Posto isso, vamos adiante. Algumas pessoas, entre 1923 e 1945, amaram Adolf Hitler, o homem que liderou a Alemanha numa guerra contra o mundo, que desejou eliminar os judeus da face da terra, que julgava que os mais fracos não eram dignos de respirar o mesmo ar que ele, que não hesitou em eliminar concorrentes e até antigos amigos que considerava não serem mais úteis. Hoje, Hitler não parece digno de amor. Mas ele o teve. Nesta reportagem não trataremos de discutir se ele mereceu esse sentimento, se as pessoas que o amavam sabiam das dimensões destrutivas de seu caráter, ou se podiam prever o mal que suas políticas desencadeariam. Trataremos, antes disso, de discutir que, para fazer o que fez, para chegar ao poder e para exercê-lo, Hitler precisou ser amado, respeitado e admirado. E essa talvez seja a face mais perturbadora de sua biografia.
Tanto é assim que hoje, 60 anos após o suicídio de Hitler, esse tem sido o enfoque cada vez mais utilizado por pesquisadores, em trabalhos sobre o nazismo. É o caso de A Queda (Der Undergang), biografia escrita pelo historiador alemão Joachim Fest, em 2002, que agora chega em versão cinematográfica ao Brasil. Não é preciso quebrar muito a cabeça para entender por que o filme que retrata os últimos dias de Hitler causou tanta polêmica no seu país de origem. O homem que surge na tela não chega nem perto do monstro assassino que povoa a imaginação das pessoas. É um sujeito doente, frágil e envelhecido, que adora chocolates. Os delírios de grandeza e acessos de fúria aparecem de vez em quando, mas ele também é capaz de gestos de delicadeza e ternura com sua secretária, Traudl Junge (cujas memórias também serviram aos roteiristas do filme), com a namorada Eva Braun, a quem toma como esposa pouco antes de morrer, e com sua cadela, Blondi.
“Demasiado humano”, reclamou o popular jornal alemão Bild. O Die Zeit, um semanário mais classudo, tranqüilizou: “O filme não pode ser acusado de promover qualquer fascinação mórbida ou colocar o nazismo em molduras de um épico”. Num artigo no Der Tagesspiegel, o historiador alemão Wilfried Nippel, da Universidade Humboldt, em Berlim, escreveu que “a Alemanha que seguia e venerava Hitler, as milhares de pessoas que aplaudiam seus discursos anti-semitas em praça pública, desapareceram do texto de Fest”. O americano The New York Times, também criticou: “Ele almoça. Senta-se. Treme. Mas e daí? Todos somos humanos, mas a maioria de nós não ajuda a catalisar o assassinato de 50 milhões de pessoas”.
Brigas à parte, o fato é que A Queda toca num ponto que permanece polêmico entre os historiadores: sob muitos aspectos, Hitler foi um homem comum, banal até, que de uma infância pobre e obscura conquistou a admiração da imensa maioria do povo alemão e chegou ao poder. Mas para que a história de como isso foi possível seja contada é preciso voltar no tempo para além dos anos que nos separam de sua morte num esconderijo em Berlim.
Nenhuma grande glória ou tragédia parecia estar à espera do pequeno Adolf, nascido em 1889, na cidadezinha austríaca de Braunau, perto da fronteira com a Alemanha. Desde cedo, o menino era mimado pela mãe, Klara, e surrado pelo pai, Alois, funcionário da alfândega. Os colegas de escola lembravam-se de um moleque teimoso, preguiçoso e não muito brilhante.
Ao chegar à adolescência, Adolf dizia saber exatamente o que queria da vida: tornar-se pintor. Tentou matricular-se duas vezes na Academia de Artes de Viena e não foi aceito. A essa altura órfão de pai e mãe, vivia em pequenos albergues da capital da Áustria. Segundo o historiador britânico Ian Kershaw, da Universidade de Sheffield, foi para escapar do serviço militar que Hitler se mudou para Munique, no sul da Alemanha, em 1913. A ironia é que apenas um ano depois, alemães e austríacos entraram lado a lado na Primeira Guerra Mundial, e ele se alistou no Exército alemão. “Tudo indica que Hitler tinha se tornado um adepto do pangermanismo, comum na época dos dois lados da fronteira”, diz Kershaw. A idéia era que os povos de língua e cultura alemã deveriam se unir e, com a guerra, assumir o papel de principal potência européia.
“A guerra mudou o destino de Hitler”, afirma o historiador americano, John Lukacs, autor de O Hitler da História. Ele serviu na França e na Bélgica como mensageiro, posição perigosa que exigia que ele enfrentasse fogo inimigo mesmo quando seus companheiros permaneciam protegidos numa trincheira. Sua folha de serviço foi exemplar, mas nunca foi promovido além de cabo. Citado duas vezes por coragem em ação, recebeu a Cruz de Ferro de primeira classe, uma distinção raramente concedida a não oficiais. Segundo Lukacs, nas horas vagas, ele pintava e escrevia poesia. “Era um solitário, um sonhador, um idealista. A rendição da Alemanha, em 1918, foi um duro golpe nesses sonhos.”
Em sua autobiografia, Hitler reconheceu a importância que a derrota na guerra teve para seu futuro. “Foi então que eu decidi entrar na política”, escreveu em Mein Kampf (Minha Luta), publicado em 1925. A decisão, no entanto, foi bem mais casual do que o relato faz pensar. “Foi a política que encontrou Hitler, e não o contrário”, afirma Kershaw. Sem profissão, nem perspectivas, ele aceitou uma missão dada pelos seus superiores no Exército: doutrinar os colegas, e entre os militares, Hitler difundiu a idéia de que o fracasso da Alemanha na guerra deveu-se a judeus e comunistas que haviam traído os interesses patrióticos. Não temos a medida de quanto daquilo era sua própria interpretação da ideologia pangermânica e quanto era influência de outros companheiros de trincheiras. O certo é que, em 1919, nas primeiras reuniões do grupo que se transformaria no Partido Nazista, era comum ele tomar a palavra e encantar seus ouvintes: “Eu sabia falar”, escreveu em Mein Kampf. E o que ele dizia era que duas sombras pairavam sobre a Alemanha. Os judeus, que tinham tanto lucrado com a guerra quanto manipulado a rendição do país em benefício próprio, e os bolcheviques, que se organizavam no caos econômico e pregavam a submissão do país a uma ideologia alienígena. Só quando fossem dominados esses inimigos internos, a Alemanha estaria pronta para se erguer.
Nos conturbados anos 20, as palavras de Hitler soavam como uma sonata para violinos de Brahms. “Derrotada e humilhada pelo Tratado de Versalhes, a Alemanha ansiava por retomar seu orgulho. Hitler prometia uma Alemanha grande e forte outra vez”, escreve Ian Kershaw em Hitler – Um Perfil do Poder. Mas os nazistas ainda não estavam com essa bola toda em 1923, e depois de uma pífia tentativa de tomar o poder à força, Hitler acabou em cana. Considerado pouco mais que um baderneiro, ele ficou alguns meses na prisão, onde aproveitou o tempo para dar os últimos retoques no já citado Mein Kampf.
Em 1924, ele e sua turma estavam de volta. Em maio, na primeira vez que disputou uma eleição, o Partido Nazista obteve apenas 32 cadeiras para o Reichstag, o parlamento alemão, que era dominado por 102 membros do Partido Social-democrata e 95 do Partido Nacionalista. Até os comunistas tinham mais espaço: 37. No entanto, conforme crescia a crise econômica a situação se inverteu. “Parte da elite alemã, que sempre apoiou os sociais-democratas, viu em Hitler uma opção para deter as greves, passeatas e agitações populares”, diz Lukacs. Nesse momento, além do apoio de industriais e empresários, Hitler passou a contar com o apoio do Partido do Centro, que reunia os católicos alemães e que oscilava entre a social-democracia e o nacionalismo. “Quando o comunismo, inimigo maior da Igreja Católica e dos sistemas econômico e social apoiados por ela chegou ao poder na Rússia, cresceu a hostilidade da Igreja contra a esquerda e os movimentos sindicais na Alemanha. Por isso não foi surpresa que o Partido do Centro se integrasse à luta contra o bolchevismo pregada em Roma pelo papa e em Berlim por Hitler”, afirmou o historiador Percy Schramm, autor de alguns dos primeiros textos alemães sobre o nazismo no pós-guerra.
Os comícios do Partido Nazista passaram a ser grandes eventos de massa. “A primeira vez que vi Hitler foi numa foto de um cartaz que dizia: ‘Pão e paz para a Alemanha’”, disse Gertrude Heiss, que trabalhava numa pequena livraria em Munique, citada pelo historiador Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos. Mas não foi só com palavras e propaganda que Hitler conquistou o coração do povo alemão. “Sei que a afirmação pode soar chocante, mas ele pode ter sido o líder revolucionário mais popular na história do mundo moderno”, diz Lukacs. “É claro que esse processo foi gradual e recebeu uma baita ajuda da repressão que Hitler e suas organizações paramilitares instauraram desde sua subida ao poder.” Criadas por Hitler a partir das estruturas militares dissolvidas pelo Tratado de Versalhes, milícias como a SA e a SS tinham a missão de intimidar toda e qualquer concorrência, dissolvendo na pancada comícios e manifestações comunistas, empastelando jornais e depredando casas e estabelecimentos comerciais de judeus.
Mas o buraco em que a Alemanha se encontrava era ainda mais embaixo. Depois da crise global detonada com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, hiperinflação, desemprego e falências radicalizaram a crise e os alemães resolveram dar uma chance aos nazistas. Em 1932, menos de 10 anos depois de sua primeira eleição, eles conseguiram 37,3% das cadeiras no parlamento, tornando-se o maior partido da Alemanha. Em seguida, em 1933, Hitler foi escolhido chanceler pelo presidente Hindenburg. Instalados no centro do poder, os nazistas reformaram todo o sistema político do país para dar a Hitler poderes ditatoriais. Em julho de 1933, o Partido Nazista já era oficialmente o único legalizado na Alemanha e, em agosto de 1934, com a morte de Hindemburg, Hitler acumulou o cargo de presidente.
No cenário internacional, o novo ditador singrava mares arriscados, mas não exatamente bravios. Os conservadores estavam no poder na Grã-Bretanha, por exemplo, onde o risco do trabalhismo de inspiração socialista tornava um pouco mais palatável o prato que ele oferecia. Além disso, a grande depressão americana levou ao que Hobsbawm chamou de “abalo da democracia representativa”. Na década de 1930, num efeito cascata, as democracias liberais cederam espaço a governos de inspiração fascista com rapidez assustadora. Na Itália, Espanha e Portugal, na América Latina, na África e no Oriente Médio, Hitler ganhou quando não admiradores declarados, como foi o caso Getúlio Vargas, pelo menos interlocutores poderosos.
Nem todos foram na conversa de Hitler, é claro. No mundo inteiro, movimentos anti-fascistas pressionaram seus governos a se oporem ao avanço das políticas nazistas. Uma das primeiras pesquisas de opinião realizadas no mundo (a técnica nasceu nos Estados Unidos justamente na década de 1930) perguntou ao povo americano, em janeiro de 1939, quem eles queriam que ganhasse, se começasse uma guerra entre União Soviética e Alemanha: 83% foram a favor de uma vitória comunista, contra 17% de uma alemã.
Mas Hitler não era louco e sabia manter um verniz diplomático, embora suas ações não fossem nada amistosas. Em 1935, ele “revogou” o Tratado de Versalhes, reinstituindo o serviço militar obrigatório na Alemanha e reorganizando a Marinha e a Força Aérea. Mesmo quando seu discurso se tornou evidentemente belicoso, passando a reivindicar a reintegração de territórios tomados da Alemanha na Primeira Guerra, as potências européias permaneceram imobilizadas pelo receio de um novo conflito. “Não havia, na década de 1930, um político capaz de defender na França ou na Inglaterra a necessidade de uma nova guerra contra a Alemanha”, escreve Hobsbawm. Com isso Hitler teve tempo para executar as manobras militares que levaram o mundo à guerra. Reocupou a Renânia, região na fronteira com a França e invadiu a Áustria, onde foi recebido como herói. Em 1938, conseguiu que Inglaterra e França lhe cedessem a região dos Sudetos, na Tchecoslováquia, onde a maioria da população era de origem alemã e, em 1939, tomou a Polônia.
No início, a guerra só aumentou a popularidade de Hitler. Afinal, ele prometera uma vitória rápida e o mundo viu tchecos, poloneses e franceses se renderem, um a um, à superioridade germânica. Hitler acompanhava pessoalmente as operações e capitalizava cada vitória nos campos de batalha. “A maioria do povo alemão acompanhava as batalhas pelo rádio e pelo cinema. Neles, os soldados alemães sempre venciam e Hitler sempre estava a liderá-los”, afirma o historiador americano Stephen Ambrose no livro O Dia D.
Embora esse seja um tema delicado até hoje, a maioria do povo alemão apoiou Hitler e participou dos esforços de guerra. Em 1943, quando 100 mil soldados alquebrados pelo frio, pela fome e pela artilharia soviética se renderam em Stalingrado, nenhum analista militar tinha dúvida de que o sonho de Hitler estava fadado ao fracasso. No entanto, poucos resolveram abandonar o barco. Pelo contrário, a derrota no gelo foi utilizada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda, para reforçar o culto ao führer. Num discurso em Berlim, ele pediu a todos que seguissem seu líder até o fim. Herr Doktor, como era chamado por Hitler, declamou os versos do poeta alemão Theodor Körner: “Agora, erguemo-nos todos e que a tempestade se abata sobre nós”. A cena está descrita no diário de Goebbels, citado por Ian Kershaw no livro Hitler 1936-1945: Nêmesis. Segundo ele, o público composto em grande parte por veteranos de guerra respondeu em coro: “O führer comanda, nós obedecemos”.
Assim se fez. Ainda que a guerra passasse a se mostrar cada vez mais desesperada, a aura de respeito e poder que Hitler criara em torno de si permaneceu. O povo alemão culpava os outros chefes nazistas e os generais pelas derrotas. No final de 1944, Hitler foi acuado em Berlim. A guerra estava perdida e lhe restava pouco tempo. Em 1945, já no bunker, numa discussão com um grupo seleto de colaboradores, falou-se pela primeira vez de sua morte. Segundo o historiador Joachim Fest, Hitler não quis fugir. O argumento de Albert Speer, um dos ideólogos do nazismo e amigo de Hitler, foi decisivo para que ele ficasse. “No grand finale, o artista principal tem de estar no palco”, teria dito.
Curvado, mal conseguindo andar, Hitler passou seus últimos dias trancado, isolado do mundo. De lá, soube da capitulação de alguns de seus principais líderes militares como Himmler e Göring. Acusou-os de traição, mas não pôde fazer nada. Comemorou com um banquete seu último aniversário, em 20 de abril. Sua mão esquerda tremia como sintoma do mal de Parkinson. Pouco antes de se matar, Hitler casou-se com Eva Braun e ordenou um último gesto de carinho para com sua cadela Blondi: pediu que ela fosse morta também.
FONTE: Celso Miranda  

A pátria que o pariu

A ameaça comunista e a hiperinflação abriram as portas da Alemanha para o ideário nazista
Rodrigo Cavalcante
Entre 1919 e 1933, a Alemanha viveu o período conhecido como a República de Weimar. Foram tempos difíceis.
A Primeira Guerra havia terminado e o Tratado de Versalhes impôs ao país duras penas. Em resumo, os germânicos estavam falidos. O desemprego chegou a atingir 45% da população. Em 1923, por exemplo, um maço de cigarros custava 4 bilhões de marcos. E, em novembro do mesmo ano, o colapso econômico chegou ao seu ápice: um dólar valia 4,2 trilhões de marcos. Para fugir da turbulência que tomou conta de Berlim, o governo alemão mudou-se para Weimar, uma pequena e bucólica cidade da Turíngia, na antiga Alemanha Oriental. O objetivo da Assembléia que se reuniu ali era criar a Constituição da República. A nova Carta substituiria as leis dos kaisers, destronados um ano antes da derrota da Alemanha na Primeira Guerra. Nesse período em que o povo alemão ficou órfão de mandatários, membros da ala radical do Partido Social Democrata, inspirados pela recente Revolução Russa, criaram o grupo Spartakista e tentaram instaurar um governo comunista. A luta armada tomou conta das ruas de Berlim, mas o movimento foi reprimido por um governo provisório formado pela ala moderada do partido com o apoio de grupos conservadores. O esmagamento do grupo culminou com o assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, ícones do movimento.
Com a ameaça comunista e a hiperinflação, a República de Weimar já nasceu derrotada. Circulavam no país tratados racistas baseados em documentos forjados que responsabilizavam os judeus pelo fracasso na Primeiro Guerra, como parte de um suposto plano de conspiração judaica para dominar o mundo. Grupos nacionalistas armados assassinavam quem considerassem inimigos da Alemanha. Até o final de 1922, mais de 400 pessoas foram mortas por motivos políticos, a maioria vítima de grupos de extrema-direita.
As insurreições e tentativas de golpe eram constantes. Em 1923, em Munique, Adolf Hitler, líder do pequeno Partido Nacional-socialista (que depois teria seu nome abreviado para Partido Nazista), fez sua primeira tentativa de golpe de Estado. Fracassou. Graças a um novo plano do governo que conseguiu estabilizar o valor do marco e renegociar o pagamento das indenizações de guerra e com o apoio de empréstimos dos Estados Unidos, tudo indicava que o pior havia passado. Mas a quebra da bolsa americana, em 1929, e a depressão econômica resultante dela minaram todo o otimismo do governo alemão, cada vez mais pressionado pela ascensão de políticos nazistas. Em 24 de março de 1933, uma Alemanha exausta e dominada por uma câmara de deputados já pouco representativa resolveu dar plenos poderes a Adolf Hitler. Dez anos após sua primeira tentativa de golpe, ele chegou ao poder prometendo reerguer o país, mesmo que para isso fosse necessária uma nova guerra mundial.

Show em Nuremberg

Em 20 de novembro de 1945, um tribunal como o mundo jamais vira reuniu-se na cidade alemã de Nuremberg. No comando do show, estavam representantes das nações aliadas, vencedoras da Segunda Guerra Mundial: Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética e França. E, sentados no banco dos réus, 24 líderes nazistas. O acerto de contas passou à História como o primeiro julgamento de um regime político por crimes contra a paz e a humanidade.
Aos olhos do planeta, fazia-se ali, num salão apinhado de gente, justiça contra criminosos bárbaros, talvez os mais cruéis de todos os tempos. Mas, como qualquer show, o julgamento teve suas histórias de bastidores.
Se, por um lado, puniu os homens de Hitler, por outro, ajudou os Aliados a se livrarem de um problema espinhoso: castigar os inimigos sem, no entanto, acabar com a Alemanha, país fundamental para o futuro equilíbrio de poder na Europa. O que aconteceu em Nuremberg? A reposta é simples. Apontando individualmente os facínoras, responsáveis pela morte de milhões, construiu-se a imagem de que a nação alemã, inocente, tinha sido arrastada por demônios para uma guerra absurda. A lista dos 24 líderes julgados levou em conta dois critérios: a fama e os cargos ocupados.
As provas propriamente ditas não receberam tanta atenção. Cenas dramáticas, como as imagens dos campos de concentração, foram usadas para realçar a indignação internacional contra os réus. No fim, 11 deles foram condenados à morte. Nuremberg representou, sem dúvida, um golpe de mestre dos vencedores da pior guerra da História. “O genocídio alemão esteve longe de ser obra de um só homem. Foi o produto da disposição de setores amplamente diversificados da sociedade de trabalhar pelas metas visionárias de um líder carismático”, escreve Ian Kershaw.
 Saiba mais
Livros
O Hitler da História, John Lukacs, Jorge Zahar Editor, 1998 - Visão histórica boa para se iniciar no estudo do fenômeno Hitler
Para Entender Hitler, Ron Rosenbaum, Record, 2002 - Passeio mais pessoal pelas diversas explicações (e explicadores) de Hitler, tratando inclusive dos boatos sobre sua vida
Hitler – Um Perfil do Poder, Ian Kershaw, Jorge Zahar Editor, 1993 - Completo mergulho no funcionamento do poder do führer com seu caráter personalista e caótico

Post-Scriptum

Nazistas são os outros!

Harald Welzer*
Se levarmos em conta o resultado de uma pesquisa recém-divulgada na Alemanha, a história do nazismo teria de ser reescrita: segundo ela, 26% da população adulta de então auxiliaram os judeus, 13% desempenharam papel ativo na resistência aos nazistas e 17% denunciaram diretamente suas injustiças. Tem mais: apenas 1% dos alemães compactuou com os crimes cometidos pelo regime e somente 3% eram anti-semitas. Os números foram divulgados pelo Instituto de Pesquisas Emnid, um dos mais respeitados da Alemanha.
É assim que a trajetória de Hitler é vista pelos filhos e netos dos alemães que conviveram com ele no poder. Passados 60 anos do fim da Segunda Guerra, podemos concluir, então, que os alemães resistiram a Hitler. Mas isso não é verdade.
Este quadro fora de ordem já se desenhava a partir da geração pós-guerra, de acordo com uma pesquisa feita com os membros de 40 famílias das alemanhas Ocidental e Oriental. O resultado deste estudo, publicado no livro Opa war kein Nazi (“Vovô não era nazista”), revela uma discrepância dramática entre a memória familiar e a história oficial: se a segunda enfatiza a temática dos crimes praticados com o suporte do povo alemão, dentro das famílias cultiva-se uma imagem de que os nazistas eram sempre os outros. Os netos sempre ressaltam relatos de resistência cotidiana e atitudes corajosas de seus avós em tempos perigosos.
Com as pesquisas fica nítido que o conhecimento sobre o nazismo e mais especificamente sobre os extermínios em massa, torna-se inválido quando as pessoas começam a falar sobre o papel desempenhado por seus pais ou avós naquela época. Descobre-se que a vovó ou o vovô fez o possível e o impossível para sabotar a engrenagem assassina de Hitler. Apenas 2% dos entrevistados admitiram que seus antepassados consideravam o nacional-socialismo como algo “muito positivo” e só 4% disseram que seus familiares foram a favor do regime.
Engana-se quem pensa que tal quadro hipócrita seja resultado de uma má formação escolar. A recente pesquisa revela: os entrevistados com curso superior são os mais convencidos do papel positivo de seus parentes nos tempos negros. Desse grupo, até 30% dizem que seus pais ou avós ajudaram perseguidos judeus, e 15% apontam os familiares como parte da resistência da época.
É preciso ressaltar essa informação: mais de um quarto dos 80 milhões de meus compatriotas ajudaram os perseguidos! Os cerca de 300 mil judeus, que após 1938 ainda viviam na Alemanha, devem ter ficado desnorteados com tanta oferta de auxílio por parte de seus salvadores. Diante desses números, um professor judeu aqui da universidade comentou, com sarcasmo: “Puxa, muitos judeus foram tão bem escondidos pelos alemães que até hoje ninguém os encontrou de novo”.
Paralelamente a esse quadro de corajosa resistência e crônica oposição ao sistema, dissemina-se a convicção de que os parentes dos entrevistados “sofreram muito na Guerra” (65%), e também “viveram com espírito comunitário” (63%), o que mostra que persiste até hoje um dos argumentos centrais da propaganda nazista, retratando os alemães como uma comunidade de vítimas.
Estes números indicam, por fim, um outro fato muito curioso: o conhecimento histórico cognitivo e a certeza histórica emocional são duas coisas inteiramente diferentes. Justamente quando a pessoa está bem informada dos crimes nazistas é que aumenta a necessidade subjetiva de fabricar histórias familiares nas quais o avô ou a avó desempenharam os papéis de bons alemães.
Receio que a médio prazo, a cultura memorial alemã se encaminhe para a eliminação de Auschwitz, por exemplo. E nem a onipresença de monumentos e museus sobre o Holocausto hoje no país contradiz o meu temor: é exatamente quando a memória é fixada na forma de monumentos que ela perde seu significado. Monumentos, como já observara Robert Musil, são invisíveis: não perturbam em nada o tráfego e os motoristas nem tomam conhecimento da presença deles.
* Professor de psicologia social do Instituto de Ciências Culturais da Universidade de Essen, Alemanha

FONTE: AVENTURAS DA HISTÓRIA

As revoluções do século 20


Insurreições derrubaram e instauraram ditaduras

O século passado é considerado um dos períodos mais revolucionários da história mundial, marcado por transformações sociais, políticas e econômicas profundas. Os motivos para as revoluções foram diversos: da independência de países à derrubada de ditaduras – ou mesmo ao estabelecimento de novas.
1910 - Mexicana
É marcada por uma série de golpes. Francisco Madero, candidato derrotado à presidência, inicia um movimento contra o ditador Porfírio Diaz, deposto em 1911. Em 1913, o general Vitoriano Huerta destitui Madero – e acaba vencido pelos camponeses Emiliano Zapata, Pancho Villa, Venustiano Carranza e Álvaro Obregon. Com a eleição do moderado Avila Camacho, a briga acaba em 1940.
1917 - Russa
Empobrecido, o povo russo se revolta contra o governo e se divide entre mencheviques (liberais), a favor da república democrática, e bolcheviques, os socialistas que queriam um Estado proletário marxista. Em fevereiro, o império dos czares é derrubado e assume um governo liberal. Em outubro, comandados por Lênin, os socialistas dão um golpe. A guerra civil termina após três anos com a criação da União Soviética.
1945 - Chinesa
Desde 1911, o antigo império chinês havia desabado e o partido Kuomintang assumira o poder. O Partido Comunista Chinês, fundado por Mao Tsé-tung em 1921, começa uma disputa pelo poder em 1927, que se acirra em 1945. Mao vence em 1949 e a República Popular da China é proclamada.
1946 - Indonésia
Um ano após declarar independência, em 1945, a Indonésia ainda continuava sob domínio holandês. Surgem os Estados Unidos da Indonésia, mas os nacionalistas rejeitam a condição e os conflitos recomeçam. A questão só seria resolvida em 1949, quando uma conferência em Haia determinou que todas as Índias Orientais Holandesas, menos a Nova Guiné ocidental, formariam a atual Indonésia.
1956 - Húngara
Diante de uma revolta popular, a União Soviética, que ocupava a Hungria, resolve tomar Budapeste. Soldados húngaros entram na briga e os soviéticos se retiram. O primeiro-ministro Imre Nagy se une a não-comunistas, o que leva a um novo ataque soviético. Um governo moderado é instaurado.
1959 - Cubana
Após uma fracassada insurreição em 26 de julho de 1953, Fidel Castro se exila no México e organiza a guerrilha. Com apoio da população, em janeiro de 1959 o governo ditatorial de Fulgêncio Batista é derrubado e Castro se consolida no poder. Os americanos reagem com hostilidade e, em 1961, rompem com Cuba, que estatiza então a economia e adota oficialmente o comunismo.
1974 - Dos Cravos
Militares descontentes com a economia e com o desgaste da guerra colonial derrubam, em 25 de abril, o regime salazarista, em vigor desde 1926 em Portugal. Para festejar o fim da ditadura, a população distribuiu cravos (a flor nacional) aos soldados rebeldes. O general Antônio de Spínola assume.
Janeiro de 1979 - Iraniana
Também conhecida como Revolução Xiita, foi uma revolta popular que derrubou a monarquia do xá Mohammed Reza Pahlevi e proclamou a República Islâmica do Irã, liderada pelo aiatolá Khomeini. O conflito, que era contra o programa de modernização de Pahlevi e a favor da república voltada para os costumes locais, enfrentou oposição internacional, como a dos Estados Unidos.
Julho de 1979 - Sandinista
A Frente Sandinista de Libertação Nacional, liderada por Daniel Ortega, derruba a ditadura de Anastacio Somoza, em 1979 – a Nicarágua era dominada pela família Somoza fazia 45 anos. O governo de Ortega só é legitimado pelas urnas nas eleições de 1984. Porém, forças contra-revolucionárias, patrocinadas pelos Estados Unidos, venceram as eleições de 1990, acabando com o domínio sandinista.
1992 - Talibã
A história afegã é repleta de revoluções. Em 1979, guerrilheiros islâmicos derrubam o regime de inspiração soviética. A União Soviética tenta retomar o poder e é derrotada. Em 1992, a guerrilha volta, dividida entre fundamentalistas e moderados. Em 1996, o fundamentalista Talibã vence e declara o Estado Islâmico, que acaba caindo em dezembro de 2001, após a guerra contra os Estados Unidos.
FONTE: Aventuras na História

Zumbi, o grito forte de Palmares


Ele entrou para a história como o último líder do maior foco de resistência negra à escravidão no Brasil, noséculo 17. Mas uma multidão de questões ainda precisa ser respondida para traçar sua verdadeira face


Em fevereiro de 1685, uma carta quase inacreditável cruzou o Atlântico e chegou a Pernambuco. Estava assinada simplesmente “Rei”. O texto dizia: “Eu El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de todos os excessos que haveis praticado (...), e que assim o faço por entender que vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção”. Quem capitulava na mensagem era o próprio rei de Portugal, dom Pedro II (o deles, não o nosso). Mas não sabemos se o “capitão” aceitou o convite. Na verdade, não sabemos nem se a carta chegou um dia a ser entregue. Mas sabemos que o destinatário, tratado nessa linguagem cheia de honoríficos e rapapés, era mesmo o guerreiro Zumbi, um opositor quase mítico do domínio português no Brasil.
Se ele já era um mito no século 17, os debates e pesquisas dos últimos 300 anos tampouco revelaram muito sobre o verdadeiro Zumbi. Isso se deve em boa parte ao fato de que os relatos acerca de sua vida foram, sem exceção, feitos por seus inimigos: os colonos e portugueses que se puseram a combatê-lo, a soldo de senhores escravistas. “Toda a documentação sobre a vida de Zumbi e de Palmares está meio cifrada, vista pelos olhos das expedições que tentavam tomar o quilombo”, diz a historiadora Silvia Hunold Lara, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo ela, a incerteza é tão brutal que se estende até a forma do nome do líder palmarino – o certo é Zumbi ou Zambi? A primeira forma é mais comum nos relatos lusos, mas isso não quer dizer que seja a certa.
Para valorizar o próprio esforço ou para justificar os fracassos em capturá-lo, os primeiros relatos acerca de Zumbi, feitos em sua maioria por militares portugueses, ajudaram a criar o personagem que acabaria se tornando um fundador da identidade dos descendentes de africanos no Brasil. Um homem forte, orgulhoso, inconformado com sua condição social, que resolveu enfrentar seus algozes e libertar seu povo. Mas tampouco essa imagem de um Zumbi revolucionário se sustenta em fatos. Sua biografia está envolta em diversas dúvidas. Entre as mais elementares está sua origem. Era ele um chefe africano trazido à força para ser escravo? Ou teria nascido no Brasil? Sobre uma coisa, pelo menos, os especialistas concordam: ele viveu e morreu em Palmares, um quilombo – ou seja, um reduto de ex-escravos e seus descendentes.
 Vida em Palmares
Os primeiros relatos sobre o quilombo de Palmares são desencontrados e datam do início do século 17. Eles indicam que ele surgiu em fins do século 16, no sul da então capitania de Pernambuco. Fugindo provavelmente de um engenho de cana nordestino, um grupo de escravos africanos deixou o litoral e foi para o interior – tentando evitar caçadores de recompensa e soldados que, a mando dos senhores de engenho, capturavam e matavam fugitivos. A jornada a pé, que pode ter durado até dois anos, levou os ex-escravos para a serra da Barriga, região conhecida genericamente como “os Palmares”: um pedaço de mata Atlântica coberto por palmeiras, encravado no meio do sertão (atualmente território de Alagoas). Aquelas terras tinham fama de ser férteis, mas a combinação entre mata fechada e terreno íngreme fazia dela uma fortaleza natural.
Se os criadores do quilombo realmente vieram de um engenho, a grande maioria deveria ser homem, pois as fazendas abrigavam poucas mulheres. A proporção de escravos nascidos no Brasil também devia ser muito baixa, uma vez que era raro que africanos conseguissem viver o suficiente para ter sua própria família. “Tudo indica que africanos do complexo angolano (região que englobava, além de Angola, também parte do atual Congo) teriam tido um papel determinante em Palmares”, afirma Mário Maestri, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Há, por exemplo, a tradição de que eles chamavam seu reduto de Angola Janga, ou “Angola Pequena”. Se essa idéia estiver correta, o povo original de Palmares era composto, em grande parte, por gente do grupo lingüístico banto – um dos primeiros na África a desenvolver a agricultura, a criação de animais e o uso do ferro, tendo se expandido por boa parte de seu continente.
Já nos primeiros anos de organização, o aglomerado de fugitivos se tornou uma pedra no sapato dos portugueses. Os habitantes de Palmares, periodicamente, invadiam engenhos para libertar escravos, roubar comida e armas e raptar mulheres, artigo raro no quilombo em formação. Em 1602, o governador-geral do Brasil, Diogo Botelho, mandou uma expedição contra eles – a primeira de 40, ou até mais de 60, de acordo com alguns historiadores. Depois de destruir cabanas e fazer alguns prisioneiros, os portugueses pensaram ter acabado com a vila. Mas, sempre que uma tropa aparecia, os palmarinos migravam para o mato, deixando para trás roças e cabanas que eram destruídas e queimadas. Dias depois, outras eram erguidas.
Esse modo de vida limitava o crescimento do povoado. Mas, em 1630, a sorte sorriu para Palmares. Foi quando os holandeses desembarcaram em Pernambuco, na tentativa de tirar os lucros do açúcar das mãos de portugueses e espanhóis, então governados pelo mesmo rei. A invasão colocou em polvorosa o Nordeste. Com a vitória inicial dos holandeses, em 1645, parte dos luso-brasileiros manteve uma espécie de guerrilha. Donos de engenho alistaram seus escravos para a luta, o que facilitava as fugas. Em meio à instabilidade, Palmares cresceu, recebeu milhares de novos moradores e, quando enfim os holandeses foram expulsos, em 1654, a vila tinha virado uma potência formada por vários aglomerados populacionais.
Os dados sobre as dimensões de Palmares são desencontrados. Documentos coloniais falam em 30 mil pessoas, número provavelmente superestimado. O crescimento demográfico deu-se principalmente pela chegada de novos moradores. Existe também a possibilidade de que a população de Palmares fosse poligâmica e até poliândrica – o que significa que uma mulher podia ter vários maridos. Para alimentar a população crescente, a economia local era composta por uma mistura de caça, coleta e agricultura, em que se plantavam gêneros como mandioca, batata-doce e feijão. É certo que também havia comércio com os vizinhos. “A idéia de que Palmares era um refúgio isolado no mato pode até ser verdadeira para os primeiros anos de assentamento. No entanto, após a metade do século, o relacionamento entre os negros e seus vizinhos certamente já evoluíra para um intenso intercâmbio com índios e até com brancos”, diz Flávio Gomes, pesquisador do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A presença de brancos em Palmares ainda é motivo de discussão, mas sabe-se que isso ocorreu depois em quilombos de outras regiões. Apesar da suposta hostilidade em relação aos brancos, há indícios de que criadores de gado levavam seus rebanhos para pastar na região de Palmares e mantinham comércio com os quilombolas, a ponto de serem chamados, com desdém, de “colonos dos negros”.
Em relação aos índios, o convívio parece ser mais evidente. Escavações arqueológicas têm encontrado cerâmica indígena, provavelmente contemporânea ao quilombo (veja quadro na página 33). “É tentador fazer essa associação e dizer que havia índios dentro do quilombo, mas pode se tratar também de algum tipo de comércio”, diz o arqueólogo americano Scott Allen, da Universidade Federal de Alagoas. Já segundo Pedro Paulo Funari, historiador e arqueólogo da Unicamp que integrou a primeira equipe a fazer sondagens no local, há 15 anos, a cerâmica indica que havia índias em Palmares: “A produção de cerâmica estava ligada às atribuições das mulheres. A presença desse material em Palmares pode querer dizer que os ex-escravos tinham esposas indígenas”. Coisa perfeitamente consistente com a escassez de mulheres negras por lá. De qualquer modo, a mestiçagem estava na ponta da língua dos palmarinos. Seu idioma parecia ter uma base africana misturada a palavras e estruturas tiradas do português e do tupi – os colonos precisavam de intérpretes para falar com eles.
A consolidação do quilombo culminou na criação de uma espécie de confederação entre os vários povoados de Palmares. A população local escolheu como chefe um guerreiro conhecido como Ganga-Zumba, que governava a partir de Macaco, a principal vila do refúgio. Não se sabe se “Ganga-Zumba” seria nome próprio ou um título dado ao líder. “A palavra ganga significava ‘poder’, ou ‘sacerdote’ em várias sociedades da África central”, diz Flávio Gomes.
Para a maioria dos especialistas, foi nessa época de relativa calmaria que Zumbi teria nascido em Palmares. Um dos motivos para sustentar que o líder nasceu ali mesmo e não chegou depois, fugindo da escravidão, é o fato de que ele seria sobrinho de Ganga-Zumba. Porém, o traço familiar é também incerto. Para Mário Maestri, a designação de “sobrinho” não deve ser entendida literalmente. “A trama de parentescos deve ter sido sobretudo simbólica. As condições históricas não teriam permitido a formação de um clã familiar que dominasse politicamente Palmares”, diz Maestri. Assim, dizer que Zumbi era “sobrinho” de Ganga-Zumba equivaleria a afirmar que ele era um protegido do chefe.
A origem de Zumbi permanece controversa. Ter nascido ou não em Palmares determina se ele foi ou não escravo. E caso ele tenha nascido livre em Palmares, onde, como diz o professor Funari, a miscigenação entre negros e índios era comum, não se pode afastar a chance de que ele próprio fosse mestiço de pai africano e mãe índia. Dá para imaginar o tamanho da polêmica em que estamos nos metendo aqui? “Não se pode dizer o quanto essa possibilidade é confiável. Mas que é possível, é”, diz Funari.
Se a origem de Zumbi é incerta, a infância é definitivamente lendária. Décio Freitas, historiador gaúcho morto no ano passado, escreveu um texto clássico sobre Palmares, em que dizia ter descoberto um relato da captura de Zumbi ainda bebê por uma expedição portuguesa ao local. Ele teria sido vendido ao padre Antônio Melo, que o teria criado para ser coroinha. Aos 15 anos, no entanto, Zumbi teria fugido. “Essa é uma versão fantasiosa, mas não impossível”, diz Flávio Gomes. “Décio jamais mostrou o documento em que apoiava essa biografia de Zumbi. E, além disso, ele ficou conhecido por romancear sistematicamente sua produção”, diz Maestri.
Exceto pelo texto de Décio, não há outro relato sobre a juventude de Zumbi. Ele deve ter crescido num período anterior à guerra que os portugueses moveram contra o quilombo, impulsionados pela falta de mão-de-obra nos engenhos. Nessa época, a vida social em Palmares era um arremedo daquilo que seus habitantes conheciam dos antepassados na África, talvez com elementos indígenas e até portugueses incorporados ao seu cotidiano. Seus líderes, a exemplo de Ganga-Zumba, deviam ser guerreiros e guias religiosos. Não sabemos se Zumbi se casou ou teve filhos (embora a carta do rei de Portugal, reproduzida no início desta reportagem, sugira isso). Zumbi é geralmente descrito como guerreiro porque os relatos sobre ele aparecem num período de guerra. Mas não é difícil imaginar que, em tempos de paz, Zumbi plantasse mandioca e caçasse porcos-do-mato.
General Zumbi
Foi num relatório do comando militar da capitania de Pernambuco, escrito por volta de 1670, que o nome Zumbi aparece citado pela primeira vez. O documento atribui a ele o sucesso dos ex-escravos “fugidos” nos combates com colonos nas cercanias da serra da Barriga. Zumbi seria o homem de confiança do chefe Ganga-Zumba, uma espécie de general dos exércitos de Palmares. Outros documentos da mesma época destacam a capacidade militar de Zumbi. Um deles diz que, ao enfrentar uma expedição liderada por Manuel Lopes Galvão, Zumbi levou um tiro na perna que o teria deixado manco, mas não o impedira de continuar lutando.
Sob ataques constantes, Palmares se tornou uma fortaleza, com diversos povoados cercados por muralhas reforçadas de pau-a-pique. Na encosta que levava até a vila de Macaco, os quilombolas cavavam buracos, colocavam estacas no fundo e as cobriam com folhas secas. Isso era tão comum que o local entrou para os mapas dos soldados coloniais com o apelido de Outeiro dos Mundéus (mundéu, ou mundé, é justamente o nome dessa armadilha). E os palmarinos também partiam para a ofensiva. “Diversas expedições quilombolas atacaram, entre 1660 e 1670, os povoados de Serinhaém, Porto Calvo, Penedo e Alagoas, principalmente para capturar armas e munição, mas também para saquear fazendas e estabelecimentos comerciais”, escreveu Décio Freitas em seu Palmares – A Guerra dos Escravos.
Por volta de 1675, as comunidades atacadas financiaram uma grande expedição militar sob o comando de Fernão Lopes Carrilho, que já tinha enfrentado e vencido índios e escravos rebeldes em outros cantos do Nordeste. Ele aprisionou ou matou vários dos principais chefes do quilombo, feriu o próprio Ganga-Zumba e quase capturou a mãe do líder. Carrilho chegou a anunciar que tinha destruído Palmares de vez. Não era verdade, mas, pela primeira vez em décadas, a situação forçou Ganga-Zumba a negociar.
Em 1678, uma missão enviada pelo “rei de Palmares”, como foi anunciado, adentrou o Recife. Um cronista escreveu: “Notável foi o alvoroço que causou a vista daqueles bárbaros. Porque entraram com seus arcos e flechas, e uma arma de fogo (...), corpulentos e valorosos todos”. O acordo de paz previa que os nascidos em Palmares ficariam livres, ganhariam terra para cultivar, direito de comercializar com seus vizinhos e a condição de vassalos de Portugal. Parecia ótimo, não fosse o fato de que os escravos libertados (e talvez o próprio Zumbi, de acordo com aqueles que defendem a tese de ele nasceu escravo e fugiu para Palmares) teriam de voltar para seus senhores. Ganga-Zumba decidiu aceitar as cláusulas e se mudou com algumas centenas de seguidores e seu irmão Gana-Zona para a localidade de Cucaú. Zumbi se recusou a ir e declarou ser o novo líder de Palmares (Ganga-Zumba morreu logo depois e as histórias da época dão conta de que Zumbi teria mandado envenená-lo). Seguiu-se uma guerra entre partidários de Zumbi e de Gana-Zona que levou à intervenção dos portugueses e à extinção do “quilombo livre” de Cucaú.
As autoridades coloniais e o próprio rei de Portugal tentaram repetidas vezes oferecer ao novo chefe um acordo semelhante ao que fizeram com Ganga-Zumba, mas Zumbi nunca aceitou. No início da década de 1690, o bandeirante Domingos Jorge Velho foi chamado e recebeu a missão de liderar uma expedição para caçar e exterminar de vez os focos de resistência em Palmares. À frente de mateiros experientes e conhecidos pelos métodos particularmente sanguinários, Jorge Velho não escapou de tomar algumas sovas dos guerreiros de Zumbi. Em 1692, num combate de três semanas, sua tropa de cerca de mil homens foi reduzida pela metade, antes de fugir e se perder no mato. Dois anos depois, Jorge Velho voltou. Tinha sob seu comando um incrível exército para a época: 9 mil homens – e alguns canhões.
A resistência de Palmares dependia de manter a artilharia inimiga longe das muralhas de Macaco. Depois de um cerco que durou semanas, no entanto, Jorge Velho conseguiu se aproximar com seus canhões. Zumbi liderou pessoalmente um ataque desesperado para evitar a destruição das barreiras, mas falhou. Os bandeirantes mataram centenas de guerreiros e invadiram a capital palmarina. Zumbi fugiu.
O último ano da vida do líder foi marcado por ataques esparsos, ao lado de um punhado de companheiros, que tentavam manter viva a rebelião escrava. Foi por meio de um membro desse grupo, Antônio Soares, que os homens de Jorge Velho chegaram a Zumbi. Capturado e torturado, Soares aceitou levar os bandeirantes em sigilo até o esconderijo rebelde. Lá chegando, ele mesmo teria matado Zumbi com uma traiçoeira punhalada. De posse do corpo do líder, os mercenários arrancaram-lhe um dos olhos e cortaram-lhe a mão direita. O pênis de Zumbi foi decepado e enfiado em sua própria boca. Já a cabeça foi salgada e levada para Recife, onde apodreceu em praça pública.

Arqueologia de Palmares

As escavações já foraminterrompidas por não acharem traços marcantes de ocupação africana
Enquanto você lê esta reportagem, o arqueólogo Scott Allen e seus colegas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) estão caminhando sobre um quebra-cabeças histórico dos mais bagunçados. A equipe está investigando o platô que fica no alto da serra da Barriga, em busca de sinais de Palmares e das levas de ocupação humana que chegaram ao local antes de Zumbi e seus companheiros. Em sete meses de trabalho – Allen e companhia estão por lá desde março –, deu para perceber que o local sofreu um bocado depois do fim do quilombo. E, ironicamente, até as tentativas de celebrar o que Palmares representa podem ter atrapalhado. “Pelo que os moradores da serra nos contaram, nos anos 1940 começaram a abrir a mata para cultivo, ainda usando só a enxada”, conta Allen. A coisa mudou de figura, porém, quando, nos anos 1980 e 1990, o platô virou o foco das comemorações anuais de 20 de novembro, em homenagem a Zumbi. Uma terraplenagem pode ter removido até 60 centímetros do solo do platô, bagunçando significativamente a estratigrafia (a sucessão de camadas de solo, vital para estabelecer a seqüência de ocupação de um sítio arqueológico). A equipe de Allen está seguindo os passos das primeiras escavações depois de um longo hiato. Em 1997, a Fundação Cultural Palmares, que ajuda a gerir o local por mandato do governo federal, chegou mesmo a proibir as escavações ali, uma vez que os achados originais estavam mostrando uma presença indígena muito mais forte (e uma africana muito menos marcada) do que se esperava. Tanto o arqueólogo Pedro Paulo Funari quanto Allen dizem entender a proibição e não atacam a fundação – afinal, poucos lugares são mais simbólicos para o movimento negro brasileiro. Com a nova permissão para os trabalhos, os pesquisadores da Ufal continuam a achar indícios fortes de presença indígena. São urnas funérias e outros objetos de cerâmica, que podem remontar a até mil anos atrás e talvez se estendam até a época em que o quilombo existia. Há também faiança, um tipo português de cerâmica (nesse caso, feito na própria colônia). Alguma peça pode sugerir influências africanas, mas a análise ainda precisa ser aprofundada. “Apesar de tudo, acredito que temos grandes chances de encontrar rastros dos palmarinos, em especial em outros sítios, menos impactados”, diz Allen. Com o auxílio do computador, eles pretendem “unir os pontos” de cada sítio achado para tentar encontrar sinais de estruturas arquitetônicas. E resta ainda saber onde exatamente ficava o povoado de Macaco. “Eu acho que estava mais na encosta da serra, não no topo”, diz Allen.

A queda de Zumbi

A lenda do suicídiocoletivo em Palmares
Logo após ficar diante de Zumbi e saudá-lo, o traidor Antônio Soares o apunhalou. Este é, hoje em dia, o cenário mais aceito pelos pesquisadores para descrever a morte do líder de Palmares. Curiosamente, essa história permaneceu esquecida durante muito tempo. Tudo em nome de uma versão mais, digamos, épica: “Até o início dos anos 1960, a historiografia dizia que Zumbi e outros tantos em Palmares tinham cometido suicídio em 1694, ao se atirar dos penhascos da serra da Barriga”, diz Flávio Gomes. Para reforçar ainda mais a aura lendária, a narrativa do suicídio coletivo tem paralelos com o que teriam feito os judeus que defendiam a fortaleza de Massada, no século 1 (diante da iminente derrota, eles preferiram se jogar das montanhas a cair nas mãos dos invasores romanos). Essa visão pode, portanto, ter sido forjada por um cronista português cheio de histórias da Antiguidade na cabeça. O fundo de verdade por trás disso é que Jorge Velho precisou construir uma contramuralha, na diagonal em relação ao muro da vila de Macaco, de forma a poder levar seus canhões perto o suficiente para arrasar as defesas de Zumbi. A obra avançou bastante, mas ainda havia uma pequena brecha entre ela e um desfiladeiro quando os palmarinos a descobriram. Zumbi, então, ordenou o ataque através da passagem que restava. Os guerreiros de Palmares foram repelidos e cerca de 500 deles acabaram rolando barranco abaixo, o que parece ter sido interpretado, erroneamente, como suicídio. Mas de fato há relatos de que, quando os soldados coloniais entraram em Macaco e nos demais povoados, algumas mães palmarinas mataram seus filhos e a si próprias para evitar a escravidão.

Saiba mais

Livros
A Hidra e os Pântanos, Flávio Gomes, Editora da Unesp, 2005 - Compara vários quilombos do Brasil com núcleos rebeldes de escravos em outros países da América.
Palmares, Ontem e Hoje, Pedro Paulo Funari e Aline V. de Carvalho, Jorge Zahar Editor, 2005 - Introdução instigante à história do quilombo. Funari participou das escavações pioneiras no local.

Palmares – A Guerra dos Escravos, Décio Freitas, Graal, 1990 - Controverso, continua sendo obra fundamental sobre a história palmarina. Clara, irônica e gostosa de ler.


FONTE: Aventuras na História /Reinaldo Lopes