Ele entrou para a história como o último líder do maior foco de resistência negra à escravidão no Brasil, noséculo 17. Mas uma multidão de questões ainda precisa ser respondida para traçar sua verdadeira face
Em fevereiro de 1685, uma carta quase inacreditável cruzou o Atlântico e chegou a Pernambuco. Estava assinada simplesmente “Rei”. O texto dizia: “Eu El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de todos os excessos que haveis praticado (...), e que assim o faço por entender que vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção”. Quem capitulava na mensagem era o próprio rei de Portugal, dom Pedro II (o deles, não o nosso). Mas não sabemos se o “capitão” aceitou o convite. Na verdade, não sabemos nem se a carta chegou um dia a ser entregue. Mas sabemos que o destinatário, tratado nessa linguagem cheia de honoríficos e rapapés, era mesmo o guerreiro Zumbi, um opositor quase mítico do domínio português no Brasil.
Se ele já era um mito no século 17, os debates e pesquisas dos últimos 300 anos tampouco revelaram muito sobre o verdadeiro Zumbi. Isso se deve em boa parte ao fato de que os relatos acerca de sua vida foram, sem exceção, feitos por seus inimigos: os colonos e portugueses que se puseram a combatê-lo, a soldo de senhores escravistas. “Toda a documentação sobre a vida de Zumbi e de Palmares está meio cifrada, vista pelos olhos das expedições que tentavam tomar o quilombo”, diz a historiadora Silvia Hunold Lara, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo ela, a incerteza é tão brutal que se estende até a forma do nome do líder palmarino – o certo é Zumbi ou Zambi? A primeira forma é mais comum nos relatos lusos, mas isso não quer dizer que seja a certa.
Para valorizar o próprio esforço ou para justificar os fracassos em capturá-lo, os primeiros relatos acerca de Zumbi, feitos em sua maioria por militares portugueses, ajudaram a criar o personagem que acabaria se tornando um fundador da identidade dos descendentes de africanos no Brasil. Um homem forte, orgulhoso, inconformado com sua condição social, que resolveu enfrentar seus algozes e libertar seu povo. Mas tampouco essa imagem de um Zumbi revolucionário se sustenta em fatos. Sua biografia está envolta em diversas dúvidas. Entre as mais elementares está sua origem. Era ele um chefe africano trazido à força para ser escravo? Ou teria nascido no Brasil? Sobre uma coisa, pelo menos, os especialistas concordam: ele viveu e morreu em Palmares, um quilombo – ou seja, um reduto de ex-escravos e seus descendentes.
Vida em Palmares
Os primeiros relatos sobre o quilombo de Palmares são desencontrados e datam do início do século 17. Eles indicam que ele surgiu em fins do século 16, no sul da então capitania de Pernambuco. Fugindo provavelmente de um engenho de cana nordestino, um grupo de escravos africanos deixou o litoral e foi para o interior – tentando evitar caçadores de recompensa e soldados que, a mando dos senhores de engenho, capturavam e matavam fugitivos. A jornada a pé, que pode ter durado até dois anos, levou os ex-escravos para a serra da Barriga, região conhecida genericamente como “os Palmares”: um pedaço de mata Atlântica coberto por palmeiras, encravado no meio do sertão (atualmente território de Alagoas). Aquelas terras tinham fama de ser férteis, mas a combinação entre mata fechada e terreno íngreme fazia dela uma fortaleza natural.
Se os criadores do quilombo realmente vieram de um engenho, a grande maioria deveria ser homem, pois as fazendas abrigavam poucas mulheres. A proporção de escravos nascidos no Brasil também devia ser muito baixa, uma vez que era raro que africanos conseguissem viver o suficiente para ter sua própria família. “Tudo indica que africanos do complexo angolano (região que englobava, além de Angola, também parte do atual Congo) teriam tido um papel determinante em Palmares”, afirma Mário Maestri, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Há, por exemplo, a tradição de que eles chamavam seu reduto de Angola Janga, ou “Angola Pequena”. Se essa idéia estiver correta, o povo original de Palmares era composto, em grande parte, por gente do grupo lingüístico banto – um dos primeiros na África a desenvolver a agricultura, a criação de animais e o uso do ferro, tendo se expandido por boa parte de seu continente.
Já nos primeiros anos de organização, o aglomerado de fugitivos se tornou uma pedra no sapato dos portugueses. Os habitantes de Palmares, periodicamente, invadiam engenhos para libertar escravos, roubar comida e armas e raptar mulheres, artigo raro no quilombo em formação. Em 1602, o governador-geral do Brasil, Diogo Botelho, mandou uma expedição contra eles – a primeira de 40, ou até mais de 60, de acordo com alguns historiadores. Depois de destruir cabanas e fazer alguns prisioneiros, os portugueses pensaram ter acabado com a vila. Mas, sempre que uma tropa aparecia, os palmarinos migravam para o mato, deixando para trás roças e cabanas que eram destruídas e queimadas. Dias depois, outras eram erguidas.
Esse modo de vida limitava o crescimento do povoado. Mas, em 1630, a sorte sorriu para Palmares. Foi quando os holandeses desembarcaram em Pernambuco, na tentativa de tirar os lucros do açúcar das mãos de portugueses e espanhóis, então governados pelo mesmo rei. A invasão colocou em polvorosa o Nordeste. Com a vitória inicial dos holandeses, em 1645, parte dos luso-brasileiros manteve uma espécie de guerrilha. Donos de engenho alistaram seus escravos para a luta, o que facilitava as fugas. Em meio à instabilidade, Palmares cresceu, recebeu milhares de novos moradores e, quando enfim os holandeses foram expulsos, em 1654, a vila tinha virado uma potência formada por vários aglomerados populacionais.
Os dados sobre as dimensões de Palmares são desencontrados. Documentos coloniais falam em 30 mil pessoas, número provavelmente superestimado. O crescimento demográfico deu-se principalmente pela chegada de novos moradores. Existe também a possibilidade de que a população de Palmares fosse poligâmica e até poliândrica – o que significa que uma mulher podia ter vários maridos. Para alimentar a população crescente, a economia local era composta por uma mistura de caça, coleta e agricultura, em que se plantavam gêneros como mandioca, batata-doce e feijão. É certo que também havia comércio com os vizinhos. “A idéia de que Palmares era um refúgio isolado no mato pode até ser verdadeira para os primeiros anos de assentamento. No entanto, após a metade do século, o relacionamento entre os negros e seus vizinhos certamente já evoluíra para um intenso intercâmbio com índios e até com brancos”, diz Flávio Gomes, pesquisador do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A presença de brancos em Palmares ainda é motivo de discussão, mas sabe-se que isso ocorreu depois em quilombos de outras regiões. Apesar da suposta hostilidade em relação aos brancos, há indícios de que criadores de gado levavam seus rebanhos para pastar na região de Palmares e mantinham comércio com os quilombolas, a ponto de serem chamados, com desdém, de “colonos dos negros”.
Em relação aos índios, o convívio parece ser mais evidente. Escavações arqueológicas têm encontrado cerâmica indígena, provavelmente contemporânea ao quilombo (veja quadro na página 33). “É tentador fazer essa associação e dizer que havia índios dentro do quilombo, mas pode se tratar também de algum tipo de comércio”, diz o arqueólogo americano Scott Allen, da Universidade Federal de Alagoas. Já segundo Pedro Paulo Funari, historiador e arqueólogo da Unicamp que integrou a primeira equipe a fazer sondagens no local, há 15 anos, a cerâmica indica que havia índias em Palmares: “A produção de cerâmica estava ligada às atribuições das mulheres. A presença desse material em Palmares pode querer dizer que os ex-escravos tinham esposas indígenas”. Coisa perfeitamente consistente com a escassez de mulheres negras por lá. De qualquer modo, a mestiçagem estava na ponta da língua dos palmarinos. Seu idioma parecia ter uma base africana misturada a palavras e estruturas tiradas do português e do tupi – os colonos precisavam de intérpretes para falar com eles.
A consolidação do quilombo culminou na criação de uma espécie de confederação entre os vários povoados de Palmares. A população local escolheu como chefe um guerreiro conhecido como Ganga-Zumba, que governava a partir de Macaco, a principal vila do refúgio. Não se sabe se “Ganga-Zumba” seria nome próprio ou um título dado ao líder. “A palavra ganga significava ‘poder’, ou ‘sacerdote’ em várias sociedades da África central”, diz Flávio Gomes.
Para a maioria dos especialistas, foi nessa época de relativa calmaria que Zumbi teria nascido em Palmares. Um dos motivos para sustentar que o líder nasceu ali mesmo e não chegou depois, fugindo da escravidão, é o fato de que ele seria sobrinho de Ganga-Zumba. Porém, o traço familiar é também incerto. Para Mário Maestri, a designação de “sobrinho” não deve ser entendida literalmente. “A trama de parentescos deve ter sido sobretudo simbólica. As condições históricas não teriam permitido a formação de um clã familiar que dominasse politicamente Palmares”, diz Maestri. Assim, dizer que Zumbi era “sobrinho” de Ganga-Zumba equivaleria a afirmar que ele era um protegido do chefe.
A origem de Zumbi permanece controversa. Ter nascido ou não em Palmares determina se ele foi ou não escravo. E caso ele tenha nascido livre em Palmares, onde, como diz o professor Funari, a miscigenação entre negros e índios era comum, não se pode afastar a chance de que ele próprio fosse mestiço de pai africano e mãe índia. Dá para imaginar o tamanho da polêmica em que estamos nos metendo aqui? “Não se pode dizer o quanto essa possibilidade é confiável. Mas que é possível, é”, diz Funari.
Se a origem de Zumbi é incerta, a infância é definitivamente lendária. Décio Freitas, historiador gaúcho morto no ano passado, escreveu um texto clássico sobre Palmares, em que dizia ter descoberto um relato da captura de Zumbi ainda bebê por uma expedição portuguesa ao local. Ele teria sido vendido ao padre Antônio Melo, que o teria criado para ser coroinha. Aos 15 anos, no entanto, Zumbi teria fugido. “Essa é uma versão fantasiosa, mas não impossível”, diz Flávio Gomes. “Décio jamais mostrou o documento em que apoiava essa biografia de Zumbi. E, além disso, ele ficou conhecido por romancear sistematicamente sua produção”, diz Maestri.
Exceto pelo texto de Décio, não há outro relato sobre a juventude de Zumbi. Ele deve ter crescido num período anterior à guerra que os portugueses moveram contra o quilombo, impulsionados pela falta de mão-de-obra nos engenhos. Nessa época, a vida social em Palmares era um arremedo daquilo que seus habitantes conheciam dos antepassados na África, talvez com elementos indígenas e até portugueses incorporados ao seu cotidiano. Seus líderes, a exemplo de Ganga-Zumba, deviam ser guerreiros e guias religiosos. Não sabemos se Zumbi se casou ou teve filhos (embora a carta do rei de Portugal, reproduzida no início desta reportagem, sugira isso). Zumbi é geralmente descrito como guerreiro porque os relatos sobre ele aparecem num período de guerra. Mas não é difícil imaginar que, em tempos de paz, Zumbi plantasse mandioca e caçasse porcos-do-mato.
General Zumbi
Foi num relatório do comando militar da capitania de Pernambuco, escrito por volta de 1670, que o nome Zumbi aparece citado pela primeira vez. O documento atribui a ele o sucesso dos ex-escravos “fugidos” nos combates com colonos nas cercanias da serra da Barriga. Zumbi seria o homem de confiança do chefe Ganga-Zumba, uma espécie de general dos exércitos de Palmares. Outros documentos da mesma época destacam a capacidade militar de Zumbi. Um deles diz que, ao enfrentar uma expedição liderada por Manuel Lopes Galvão, Zumbi levou um tiro na perna que o teria deixado manco, mas não o impedira de continuar lutando.
Sob ataques constantes, Palmares se tornou uma fortaleza, com diversos povoados cercados por muralhas reforçadas de pau-a-pique. Na encosta que levava até a vila de Macaco, os quilombolas cavavam buracos, colocavam estacas no fundo e as cobriam com folhas secas. Isso era tão comum que o local entrou para os mapas dos soldados coloniais com o apelido de Outeiro dos Mundéus (mundéu, ou mundé, é justamente o nome dessa armadilha). E os palmarinos também partiam para a ofensiva. “Diversas expedições quilombolas atacaram, entre 1660 e 1670, os povoados de Serinhaém, Porto Calvo, Penedo e Alagoas, principalmente para capturar armas e munição, mas também para saquear fazendas e estabelecimentos comerciais”, escreveu Décio Freitas em seu Palmares – A Guerra dos Escravos.
Por volta de 1675, as comunidades atacadas financiaram uma grande expedição militar sob o comando de Fernão Lopes Carrilho, que já tinha enfrentado e vencido índios e escravos rebeldes em outros cantos do Nordeste. Ele aprisionou ou matou vários dos principais chefes do quilombo, feriu o próprio Ganga-Zumba e quase capturou a mãe do líder. Carrilho chegou a anunciar que tinha destruído Palmares de vez. Não era verdade, mas, pela primeira vez em décadas, a situação forçou Ganga-Zumba a negociar.
Em 1678, uma missão enviada pelo “rei de Palmares”, como foi anunciado, adentrou o Recife. Um cronista escreveu: “Notável foi o alvoroço que causou a vista daqueles bárbaros. Porque entraram com seus arcos e flechas, e uma arma de fogo (...), corpulentos e valorosos todos”. O acordo de paz previa que os nascidos em Palmares ficariam livres, ganhariam terra para cultivar, direito de comercializar com seus vizinhos e a condição de vassalos de Portugal. Parecia ótimo, não fosse o fato de que os escravos libertados (e talvez o próprio Zumbi, de acordo com aqueles que defendem a tese de ele nasceu escravo e fugiu para Palmares) teriam de voltar para seus senhores. Ganga-Zumba decidiu aceitar as cláusulas e se mudou com algumas centenas de seguidores e seu irmão Gana-Zona para a localidade de Cucaú. Zumbi se recusou a ir e declarou ser o novo líder de Palmares (Ganga-Zumba morreu logo depois e as histórias da época dão conta de que Zumbi teria mandado envenená-lo). Seguiu-se uma guerra entre partidários de Zumbi e de Gana-Zona que levou à intervenção dos portugueses e à extinção do “quilombo livre” de Cucaú.
As autoridades coloniais e o próprio rei de Portugal tentaram repetidas vezes oferecer ao novo chefe um acordo semelhante ao que fizeram com Ganga-Zumba, mas Zumbi nunca aceitou. No início da década de 1690, o bandeirante Domingos Jorge Velho foi chamado e recebeu a missão de liderar uma expedição para caçar e exterminar de vez os focos de resistência em Palmares. À frente de mateiros experientes e conhecidos pelos métodos particularmente sanguinários, Jorge Velho não escapou de tomar algumas sovas dos guerreiros de Zumbi. Em 1692, num combate de três semanas, sua tropa de cerca de mil homens foi reduzida pela metade, antes de fugir e se perder no mato. Dois anos depois, Jorge Velho voltou. Tinha sob seu comando um incrível exército para a época: 9 mil homens – e alguns canhões.
A resistência de Palmares dependia de manter a artilharia inimiga longe das muralhas de Macaco. Depois de um cerco que durou semanas, no entanto, Jorge Velho conseguiu se aproximar com seus canhões. Zumbi liderou pessoalmente um ataque desesperado para evitar a destruição das barreiras, mas falhou. Os bandeirantes mataram centenas de guerreiros e invadiram a capital palmarina. Zumbi fugiu.
O último ano da vida do líder foi marcado por ataques esparsos, ao lado de um punhado de companheiros, que tentavam manter viva a rebelião escrava. Foi por meio de um membro desse grupo, Antônio Soares, que os homens de Jorge Velho chegaram a Zumbi. Capturado e torturado, Soares aceitou levar os bandeirantes em sigilo até o esconderijo rebelde. Lá chegando, ele mesmo teria matado Zumbi com uma traiçoeira punhalada. De posse do corpo do líder, os mercenários arrancaram-lhe um dos olhos e cortaram-lhe a mão direita. O pênis de Zumbi foi decepado e enfiado em sua própria boca. Já a cabeça foi salgada e levada para Recife, onde apodreceu em praça pública.
Arqueologia de Palmares
As escavações já foraminterrompidas por não acharem traços marcantes de ocupação africana
Enquanto você lê esta reportagem, o arqueólogo Scott Allen e seus colegas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) estão caminhando sobre um quebra-cabeças histórico dos mais bagunçados. A equipe está investigando o platô que fica no alto da serra da Barriga, em busca de sinais de Palmares e das levas de ocupação humana que chegaram ao local antes de Zumbi e seus companheiros. Em sete meses de trabalho – Allen e companhia estão por lá desde março –, deu para perceber que o local sofreu um bocado depois do fim do quilombo. E, ironicamente, até as tentativas de celebrar o que Palmares representa podem ter atrapalhado. “Pelo que os moradores da serra nos contaram, nos anos 1940 começaram a abrir a mata para cultivo, ainda usando só a enxada”, conta Allen. A coisa mudou de figura, porém, quando, nos anos 1980 e 1990, o platô virou o foco das comemorações anuais de 20 de novembro, em homenagem a Zumbi. Uma terraplenagem pode ter removido até 60 centímetros do solo do platô, bagunçando significativamente a estratigrafia (a sucessão de camadas de solo, vital para estabelecer a seqüência de ocupação de um sítio arqueológico). A equipe de Allen está seguindo os passos das primeiras escavações depois de um longo hiato. Em 1997, a Fundação Cultural Palmares, que ajuda a gerir o local por mandato do governo federal, chegou mesmo a proibir as escavações ali, uma vez que os achados originais estavam mostrando uma presença indígena muito mais forte (e uma africana muito menos marcada) do que se esperava. Tanto o arqueólogo Pedro Paulo Funari quanto Allen dizem entender a proibição e não atacam a fundação – afinal, poucos lugares são mais simbólicos para o movimento negro brasileiro. Com a nova permissão para os trabalhos, os pesquisadores da Ufal continuam a achar indícios fortes de presença indígena. São urnas funérias e outros objetos de cerâmica, que podem remontar a até mil anos atrás e talvez se estendam até a época em que o quilombo existia. Há também faiança, um tipo português de cerâmica (nesse caso, feito na própria colônia). Alguma peça pode sugerir influências africanas, mas a análise ainda precisa ser aprofundada. “Apesar de tudo, acredito que temos grandes chances de encontrar rastros dos palmarinos, em especial em outros sítios, menos impactados”, diz Allen. Com o auxílio do computador, eles pretendem “unir os pontos” de cada sítio achado para tentar encontrar sinais de estruturas arquitetônicas. E resta ainda saber onde exatamente ficava o povoado de Macaco. “Eu acho que estava mais na encosta da serra, não no topo”, diz Allen.
A queda de Zumbi
A lenda do suicídiocoletivo em Palmares
Logo após ficar diante de Zumbi e saudá-lo, o traidor Antônio Soares o apunhalou. Este é, hoje em dia, o cenário mais aceito pelos pesquisadores para descrever a morte do líder de Palmares. Curiosamente, essa história permaneceu esquecida durante muito tempo. Tudo em nome de uma versão mais, digamos, épica: “Até o início dos anos 1960, a historiografia dizia que Zumbi e outros tantos em Palmares tinham cometido suicídio em 1694, ao se atirar dos penhascos da serra da Barriga”, diz Flávio Gomes. Para reforçar ainda mais a aura lendária, a narrativa do suicídio coletivo tem paralelos com o que teriam feito os judeus que defendiam a fortaleza de Massada, no século 1 (diante da iminente derrota, eles preferiram se jogar das montanhas a cair nas mãos dos invasores romanos). Essa visão pode, portanto, ter sido forjada por um cronista português cheio de histórias da Antiguidade na cabeça. O fundo de verdade por trás disso é que Jorge Velho precisou construir uma contramuralha, na diagonal em relação ao muro da vila de Macaco, de forma a poder levar seus canhões perto o suficiente para arrasar as defesas de Zumbi. A obra avançou bastante, mas ainda havia uma pequena brecha entre ela e um desfiladeiro quando os palmarinos a descobriram. Zumbi, então, ordenou o ataque através da passagem que restava. Os guerreiros de Palmares foram repelidos e cerca de 500 deles acabaram rolando barranco abaixo, o que parece ter sido interpretado, erroneamente, como suicídio. Mas de fato há relatos de que, quando os soldados coloniais entraram em Macaco e nos demais povoados, algumas mães palmarinas mataram seus filhos e a si próprias para evitar a escravidão.
Saiba mais
Livros
A Hidra e os Pântanos, Flávio Gomes, Editora da Unesp, 2005 - Compara vários quilombos do Brasil com núcleos rebeldes de escravos em outros países da América.
Palmares, Ontem e Hoje, Pedro Paulo Funari e Aline V. de Carvalho, Jorge Zahar Editor, 2005 - Introdução instigante à história do quilombo. Funari participou das escavações pioneiras no local.
Palmares – A Guerra dos Escravos, Décio Freitas, Graal, 1990 - Controverso, continua sendo obra fundamental sobre a história palmarina. Clara, irônica e gostosa de ler.
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