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terça-feira, 12 de junho de 2012

Os amores de Hitler


Antes de tomar meio mundo à força, Hitler conquistou o apoio e a confiança de militares, industriais e do povo alemão. Em maior ou menor medida, foi aceito e respeitado e, no cenário internacional, amealhou admiradores inclusive entre os mais ciosos defensores das liberdades democráticas. Quem apoiou Hitler? Quem o aceitou? Quem o tolerou? Quem o amou? E – a pergunta mais inquietante – por quê?
Amar é gostar muito. É o sentimento intangível de desejar o bem de outra pessoa e de dedicar-lhe afeto. Pode chegar a um estado extremo de devoção ou ser apenas uma inclinação profunda a um valor, ou a alguma coisa que proporcione prazer, entusiasmo ou satisfação. Posto isso, vamos adiante. Algumas pessoas, entre 1923 e 1945, amaram Adolf Hitler, o homem que liderou a Alemanha numa guerra contra o mundo, que desejou eliminar os judeus da face da terra, que julgava que os mais fracos não eram dignos de respirar o mesmo ar que ele, que não hesitou em eliminar concorrentes e até antigos amigos que considerava não serem mais úteis. Hoje, Hitler não parece digno de amor. Mas ele o teve. Nesta reportagem não trataremos de discutir se ele mereceu esse sentimento, se as pessoas que o amavam sabiam das dimensões destrutivas de seu caráter, ou se podiam prever o mal que suas políticas desencadeariam. Trataremos, antes disso, de discutir que, para fazer o que fez, para chegar ao poder e para exercê-lo, Hitler precisou ser amado, respeitado e admirado. E essa talvez seja a face mais perturbadora de sua biografia.
Tanto é assim que hoje, 60 anos após o suicídio de Hitler, esse tem sido o enfoque cada vez mais utilizado por pesquisadores, em trabalhos sobre o nazismo. É o caso de A Queda (Der Undergang), biografia escrita pelo historiador alemão Joachim Fest, em 2002, que agora chega em versão cinematográfica ao Brasil. Não é preciso quebrar muito a cabeça para entender por que o filme que retrata os últimos dias de Hitler causou tanta polêmica no seu país de origem. O homem que surge na tela não chega nem perto do monstro assassino que povoa a imaginação das pessoas. É um sujeito doente, frágil e envelhecido, que adora chocolates. Os delírios de grandeza e acessos de fúria aparecem de vez em quando, mas ele também é capaz de gestos de delicadeza e ternura com sua secretária, Traudl Junge (cujas memórias também serviram aos roteiristas do filme), com a namorada Eva Braun, a quem toma como esposa pouco antes de morrer, e com sua cadela, Blondi.
“Demasiado humano”, reclamou o popular jornal alemão Bild. O Die Zeit, um semanário mais classudo, tranqüilizou: “O filme não pode ser acusado de promover qualquer fascinação mórbida ou colocar o nazismo em molduras de um épico”. Num artigo no Der Tagesspiegel, o historiador alemão Wilfried Nippel, da Universidade Humboldt, em Berlim, escreveu que “a Alemanha que seguia e venerava Hitler, as milhares de pessoas que aplaudiam seus discursos anti-semitas em praça pública, desapareceram do texto de Fest”. O americano The New York Times, também criticou: “Ele almoça. Senta-se. Treme. Mas e daí? Todos somos humanos, mas a maioria de nós não ajuda a catalisar o assassinato de 50 milhões de pessoas”.
Brigas à parte, o fato é que A Queda toca num ponto que permanece polêmico entre os historiadores: sob muitos aspectos, Hitler foi um homem comum, banal até, que de uma infância pobre e obscura conquistou a admiração da imensa maioria do povo alemão e chegou ao poder. Mas para que a história de como isso foi possível seja contada é preciso voltar no tempo para além dos anos que nos separam de sua morte num esconderijo em Berlim.
Nenhuma grande glória ou tragédia parecia estar à espera do pequeno Adolf, nascido em 1889, na cidadezinha austríaca de Braunau, perto da fronteira com a Alemanha. Desde cedo, o menino era mimado pela mãe, Klara, e surrado pelo pai, Alois, funcionário da alfândega. Os colegas de escola lembravam-se de um moleque teimoso, preguiçoso e não muito brilhante.
Ao chegar à adolescência, Adolf dizia saber exatamente o que queria da vida: tornar-se pintor. Tentou matricular-se duas vezes na Academia de Artes de Viena e não foi aceito. A essa altura órfão de pai e mãe, vivia em pequenos albergues da capital da Áustria. Segundo o historiador britânico Ian Kershaw, da Universidade de Sheffield, foi para escapar do serviço militar que Hitler se mudou para Munique, no sul da Alemanha, em 1913. A ironia é que apenas um ano depois, alemães e austríacos entraram lado a lado na Primeira Guerra Mundial, e ele se alistou no Exército alemão. “Tudo indica que Hitler tinha se tornado um adepto do pangermanismo, comum na época dos dois lados da fronteira”, diz Kershaw. A idéia era que os povos de língua e cultura alemã deveriam se unir e, com a guerra, assumir o papel de principal potência européia.
“A guerra mudou o destino de Hitler”, afirma o historiador americano, John Lukacs, autor de O Hitler da História. Ele serviu na França e na Bélgica como mensageiro, posição perigosa que exigia que ele enfrentasse fogo inimigo mesmo quando seus companheiros permaneciam protegidos numa trincheira. Sua folha de serviço foi exemplar, mas nunca foi promovido além de cabo. Citado duas vezes por coragem em ação, recebeu a Cruz de Ferro de primeira classe, uma distinção raramente concedida a não oficiais. Segundo Lukacs, nas horas vagas, ele pintava e escrevia poesia. “Era um solitário, um sonhador, um idealista. A rendição da Alemanha, em 1918, foi um duro golpe nesses sonhos.”
Em sua autobiografia, Hitler reconheceu a importância que a derrota na guerra teve para seu futuro. “Foi então que eu decidi entrar na política”, escreveu em Mein Kampf (Minha Luta), publicado em 1925. A decisão, no entanto, foi bem mais casual do que o relato faz pensar. “Foi a política que encontrou Hitler, e não o contrário”, afirma Kershaw. Sem profissão, nem perspectivas, ele aceitou uma missão dada pelos seus superiores no Exército: doutrinar os colegas, e entre os militares, Hitler difundiu a idéia de que o fracasso da Alemanha na guerra deveu-se a judeus e comunistas que haviam traído os interesses patrióticos. Não temos a medida de quanto daquilo era sua própria interpretação da ideologia pangermânica e quanto era influência de outros companheiros de trincheiras. O certo é que, em 1919, nas primeiras reuniões do grupo que se transformaria no Partido Nazista, era comum ele tomar a palavra e encantar seus ouvintes: “Eu sabia falar”, escreveu em Mein Kampf. E o que ele dizia era que duas sombras pairavam sobre a Alemanha. Os judeus, que tinham tanto lucrado com a guerra quanto manipulado a rendição do país em benefício próprio, e os bolcheviques, que se organizavam no caos econômico e pregavam a submissão do país a uma ideologia alienígena. Só quando fossem dominados esses inimigos internos, a Alemanha estaria pronta para se erguer.
Nos conturbados anos 20, as palavras de Hitler soavam como uma sonata para violinos de Brahms. “Derrotada e humilhada pelo Tratado de Versalhes, a Alemanha ansiava por retomar seu orgulho. Hitler prometia uma Alemanha grande e forte outra vez”, escreve Ian Kershaw em Hitler – Um Perfil do Poder. Mas os nazistas ainda não estavam com essa bola toda em 1923, e depois de uma pífia tentativa de tomar o poder à força, Hitler acabou em cana. Considerado pouco mais que um baderneiro, ele ficou alguns meses na prisão, onde aproveitou o tempo para dar os últimos retoques no já citado Mein Kampf.
Em 1924, ele e sua turma estavam de volta. Em maio, na primeira vez que disputou uma eleição, o Partido Nazista obteve apenas 32 cadeiras para o Reichstag, o parlamento alemão, que era dominado por 102 membros do Partido Social-democrata e 95 do Partido Nacionalista. Até os comunistas tinham mais espaço: 37. No entanto, conforme crescia a crise econômica a situação se inverteu. “Parte da elite alemã, que sempre apoiou os sociais-democratas, viu em Hitler uma opção para deter as greves, passeatas e agitações populares”, diz Lukacs. Nesse momento, além do apoio de industriais e empresários, Hitler passou a contar com o apoio do Partido do Centro, que reunia os católicos alemães e que oscilava entre a social-democracia e o nacionalismo. “Quando o comunismo, inimigo maior da Igreja Católica e dos sistemas econômico e social apoiados por ela chegou ao poder na Rússia, cresceu a hostilidade da Igreja contra a esquerda e os movimentos sindicais na Alemanha. Por isso não foi surpresa que o Partido do Centro se integrasse à luta contra o bolchevismo pregada em Roma pelo papa e em Berlim por Hitler”, afirmou o historiador Percy Schramm, autor de alguns dos primeiros textos alemães sobre o nazismo no pós-guerra.
Os comícios do Partido Nazista passaram a ser grandes eventos de massa. “A primeira vez que vi Hitler foi numa foto de um cartaz que dizia: ‘Pão e paz para a Alemanha’”, disse Gertrude Heiss, que trabalhava numa pequena livraria em Munique, citada pelo historiador Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos. Mas não foi só com palavras e propaganda que Hitler conquistou o coração do povo alemão. “Sei que a afirmação pode soar chocante, mas ele pode ter sido o líder revolucionário mais popular na história do mundo moderno”, diz Lukacs. “É claro que esse processo foi gradual e recebeu uma baita ajuda da repressão que Hitler e suas organizações paramilitares instauraram desde sua subida ao poder.” Criadas por Hitler a partir das estruturas militares dissolvidas pelo Tratado de Versalhes, milícias como a SA e a SS tinham a missão de intimidar toda e qualquer concorrência, dissolvendo na pancada comícios e manifestações comunistas, empastelando jornais e depredando casas e estabelecimentos comerciais de judeus.
Mas o buraco em que a Alemanha se encontrava era ainda mais embaixo. Depois da crise global detonada com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, hiperinflação, desemprego e falências radicalizaram a crise e os alemães resolveram dar uma chance aos nazistas. Em 1932, menos de 10 anos depois de sua primeira eleição, eles conseguiram 37,3% das cadeiras no parlamento, tornando-se o maior partido da Alemanha. Em seguida, em 1933, Hitler foi escolhido chanceler pelo presidente Hindenburg. Instalados no centro do poder, os nazistas reformaram todo o sistema político do país para dar a Hitler poderes ditatoriais. Em julho de 1933, o Partido Nazista já era oficialmente o único legalizado na Alemanha e, em agosto de 1934, com a morte de Hindemburg, Hitler acumulou o cargo de presidente.
No cenário internacional, o novo ditador singrava mares arriscados, mas não exatamente bravios. Os conservadores estavam no poder na Grã-Bretanha, por exemplo, onde o risco do trabalhismo de inspiração socialista tornava um pouco mais palatável o prato que ele oferecia. Além disso, a grande depressão americana levou ao que Hobsbawm chamou de “abalo da democracia representativa”. Na década de 1930, num efeito cascata, as democracias liberais cederam espaço a governos de inspiração fascista com rapidez assustadora. Na Itália, Espanha e Portugal, na América Latina, na África e no Oriente Médio, Hitler ganhou quando não admiradores declarados, como foi o caso Getúlio Vargas, pelo menos interlocutores poderosos.
Nem todos foram na conversa de Hitler, é claro. No mundo inteiro, movimentos anti-fascistas pressionaram seus governos a se oporem ao avanço das políticas nazistas. Uma das primeiras pesquisas de opinião realizadas no mundo (a técnica nasceu nos Estados Unidos justamente na década de 1930) perguntou ao povo americano, em janeiro de 1939, quem eles queriam que ganhasse, se começasse uma guerra entre União Soviética e Alemanha: 83% foram a favor de uma vitória comunista, contra 17% de uma alemã.
Mas Hitler não era louco e sabia manter um verniz diplomático, embora suas ações não fossem nada amistosas. Em 1935, ele “revogou” o Tratado de Versalhes, reinstituindo o serviço militar obrigatório na Alemanha e reorganizando a Marinha e a Força Aérea. Mesmo quando seu discurso se tornou evidentemente belicoso, passando a reivindicar a reintegração de territórios tomados da Alemanha na Primeira Guerra, as potências européias permaneceram imobilizadas pelo receio de um novo conflito. “Não havia, na década de 1930, um político capaz de defender na França ou na Inglaterra a necessidade de uma nova guerra contra a Alemanha”, escreve Hobsbawm. Com isso Hitler teve tempo para executar as manobras militares que levaram o mundo à guerra. Reocupou a Renânia, região na fronteira com a França e invadiu a Áustria, onde foi recebido como herói. Em 1938, conseguiu que Inglaterra e França lhe cedessem a região dos Sudetos, na Tchecoslováquia, onde a maioria da população era de origem alemã e, em 1939, tomou a Polônia.
No início, a guerra só aumentou a popularidade de Hitler. Afinal, ele prometera uma vitória rápida e o mundo viu tchecos, poloneses e franceses se renderem, um a um, à superioridade germânica. Hitler acompanhava pessoalmente as operações e capitalizava cada vitória nos campos de batalha. “A maioria do povo alemão acompanhava as batalhas pelo rádio e pelo cinema. Neles, os soldados alemães sempre venciam e Hitler sempre estava a liderá-los”, afirma o historiador americano Stephen Ambrose no livro O Dia D.
Embora esse seja um tema delicado até hoje, a maioria do povo alemão apoiou Hitler e participou dos esforços de guerra. Em 1943, quando 100 mil soldados alquebrados pelo frio, pela fome e pela artilharia soviética se renderam em Stalingrado, nenhum analista militar tinha dúvida de que o sonho de Hitler estava fadado ao fracasso. No entanto, poucos resolveram abandonar o barco. Pelo contrário, a derrota no gelo foi utilizada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda, para reforçar o culto ao führer. Num discurso em Berlim, ele pediu a todos que seguissem seu líder até o fim. Herr Doktor, como era chamado por Hitler, declamou os versos do poeta alemão Theodor Körner: “Agora, erguemo-nos todos e que a tempestade se abata sobre nós”. A cena está descrita no diário de Goebbels, citado por Ian Kershaw no livro Hitler 1936-1945: Nêmesis. Segundo ele, o público composto em grande parte por veteranos de guerra respondeu em coro: “O führer comanda, nós obedecemos”.
Assim se fez. Ainda que a guerra passasse a se mostrar cada vez mais desesperada, a aura de respeito e poder que Hitler criara em torno de si permaneceu. O povo alemão culpava os outros chefes nazistas e os generais pelas derrotas. No final de 1944, Hitler foi acuado em Berlim. A guerra estava perdida e lhe restava pouco tempo. Em 1945, já no bunker, numa discussão com um grupo seleto de colaboradores, falou-se pela primeira vez de sua morte. Segundo o historiador Joachim Fest, Hitler não quis fugir. O argumento de Albert Speer, um dos ideólogos do nazismo e amigo de Hitler, foi decisivo para que ele ficasse. “No grand finale, o artista principal tem de estar no palco”, teria dito.
Curvado, mal conseguindo andar, Hitler passou seus últimos dias trancado, isolado do mundo. De lá, soube da capitulação de alguns de seus principais líderes militares como Himmler e Göring. Acusou-os de traição, mas não pôde fazer nada. Comemorou com um banquete seu último aniversário, em 20 de abril. Sua mão esquerda tremia como sintoma do mal de Parkinson. Pouco antes de se matar, Hitler casou-se com Eva Braun e ordenou um último gesto de carinho para com sua cadela Blondi: pediu que ela fosse morta também.
FONTE: Celso Miranda  

A pátria que o pariu

A ameaça comunista e a hiperinflação abriram as portas da Alemanha para o ideário nazista
Rodrigo Cavalcante
Entre 1919 e 1933, a Alemanha viveu o período conhecido como a República de Weimar. Foram tempos difíceis.
A Primeira Guerra havia terminado e o Tratado de Versalhes impôs ao país duras penas. Em resumo, os germânicos estavam falidos. O desemprego chegou a atingir 45% da população. Em 1923, por exemplo, um maço de cigarros custava 4 bilhões de marcos. E, em novembro do mesmo ano, o colapso econômico chegou ao seu ápice: um dólar valia 4,2 trilhões de marcos. Para fugir da turbulência que tomou conta de Berlim, o governo alemão mudou-se para Weimar, uma pequena e bucólica cidade da Turíngia, na antiga Alemanha Oriental. O objetivo da Assembléia que se reuniu ali era criar a Constituição da República. A nova Carta substituiria as leis dos kaisers, destronados um ano antes da derrota da Alemanha na Primeira Guerra. Nesse período em que o povo alemão ficou órfão de mandatários, membros da ala radical do Partido Social Democrata, inspirados pela recente Revolução Russa, criaram o grupo Spartakista e tentaram instaurar um governo comunista. A luta armada tomou conta das ruas de Berlim, mas o movimento foi reprimido por um governo provisório formado pela ala moderada do partido com o apoio de grupos conservadores. O esmagamento do grupo culminou com o assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, ícones do movimento.
Com a ameaça comunista e a hiperinflação, a República de Weimar já nasceu derrotada. Circulavam no país tratados racistas baseados em documentos forjados que responsabilizavam os judeus pelo fracasso na Primeiro Guerra, como parte de um suposto plano de conspiração judaica para dominar o mundo. Grupos nacionalistas armados assassinavam quem considerassem inimigos da Alemanha. Até o final de 1922, mais de 400 pessoas foram mortas por motivos políticos, a maioria vítima de grupos de extrema-direita.
As insurreições e tentativas de golpe eram constantes. Em 1923, em Munique, Adolf Hitler, líder do pequeno Partido Nacional-socialista (que depois teria seu nome abreviado para Partido Nazista), fez sua primeira tentativa de golpe de Estado. Fracassou. Graças a um novo plano do governo que conseguiu estabilizar o valor do marco e renegociar o pagamento das indenizações de guerra e com o apoio de empréstimos dos Estados Unidos, tudo indicava que o pior havia passado. Mas a quebra da bolsa americana, em 1929, e a depressão econômica resultante dela minaram todo o otimismo do governo alemão, cada vez mais pressionado pela ascensão de políticos nazistas. Em 24 de março de 1933, uma Alemanha exausta e dominada por uma câmara de deputados já pouco representativa resolveu dar plenos poderes a Adolf Hitler. Dez anos após sua primeira tentativa de golpe, ele chegou ao poder prometendo reerguer o país, mesmo que para isso fosse necessária uma nova guerra mundial.

Show em Nuremberg

Em 20 de novembro de 1945, um tribunal como o mundo jamais vira reuniu-se na cidade alemã de Nuremberg. No comando do show, estavam representantes das nações aliadas, vencedoras da Segunda Guerra Mundial: Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética e França. E, sentados no banco dos réus, 24 líderes nazistas. O acerto de contas passou à História como o primeiro julgamento de um regime político por crimes contra a paz e a humanidade.
Aos olhos do planeta, fazia-se ali, num salão apinhado de gente, justiça contra criminosos bárbaros, talvez os mais cruéis de todos os tempos. Mas, como qualquer show, o julgamento teve suas histórias de bastidores.
Se, por um lado, puniu os homens de Hitler, por outro, ajudou os Aliados a se livrarem de um problema espinhoso: castigar os inimigos sem, no entanto, acabar com a Alemanha, país fundamental para o futuro equilíbrio de poder na Europa. O que aconteceu em Nuremberg? A reposta é simples. Apontando individualmente os facínoras, responsáveis pela morte de milhões, construiu-se a imagem de que a nação alemã, inocente, tinha sido arrastada por demônios para uma guerra absurda. A lista dos 24 líderes julgados levou em conta dois critérios: a fama e os cargos ocupados.
As provas propriamente ditas não receberam tanta atenção. Cenas dramáticas, como as imagens dos campos de concentração, foram usadas para realçar a indignação internacional contra os réus. No fim, 11 deles foram condenados à morte. Nuremberg representou, sem dúvida, um golpe de mestre dos vencedores da pior guerra da História. “O genocídio alemão esteve longe de ser obra de um só homem. Foi o produto da disposição de setores amplamente diversificados da sociedade de trabalhar pelas metas visionárias de um líder carismático”, escreve Ian Kershaw.
 Saiba mais
Livros
O Hitler da História, John Lukacs, Jorge Zahar Editor, 1998 - Visão histórica boa para se iniciar no estudo do fenômeno Hitler
Para Entender Hitler, Ron Rosenbaum, Record, 2002 - Passeio mais pessoal pelas diversas explicações (e explicadores) de Hitler, tratando inclusive dos boatos sobre sua vida
Hitler – Um Perfil do Poder, Ian Kershaw, Jorge Zahar Editor, 1993 - Completo mergulho no funcionamento do poder do führer com seu caráter personalista e caótico

Post-Scriptum

Nazistas são os outros!

Harald Welzer*
Se levarmos em conta o resultado de uma pesquisa recém-divulgada na Alemanha, a história do nazismo teria de ser reescrita: segundo ela, 26% da população adulta de então auxiliaram os judeus, 13% desempenharam papel ativo na resistência aos nazistas e 17% denunciaram diretamente suas injustiças. Tem mais: apenas 1% dos alemães compactuou com os crimes cometidos pelo regime e somente 3% eram anti-semitas. Os números foram divulgados pelo Instituto de Pesquisas Emnid, um dos mais respeitados da Alemanha.
É assim que a trajetória de Hitler é vista pelos filhos e netos dos alemães que conviveram com ele no poder. Passados 60 anos do fim da Segunda Guerra, podemos concluir, então, que os alemães resistiram a Hitler. Mas isso não é verdade.
Este quadro fora de ordem já se desenhava a partir da geração pós-guerra, de acordo com uma pesquisa feita com os membros de 40 famílias das alemanhas Ocidental e Oriental. O resultado deste estudo, publicado no livro Opa war kein Nazi (“Vovô não era nazista”), revela uma discrepância dramática entre a memória familiar e a história oficial: se a segunda enfatiza a temática dos crimes praticados com o suporte do povo alemão, dentro das famílias cultiva-se uma imagem de que os nazistas eram sempre os outros. Os netos sempre ressaltam relatos de resistência cotidiana e atitudes corajosas de seus avós em tempos perigosos.
Com as pesquisas fica nítido que o conhecimento sobre o nazismo e mais especificamente sobre os extermínios em massa, torna-se inválido quando as pessoas começam a falar sobre o papel desempenhado por seus pais ou avós naquela época. Descobre-se que a vovó ou o vovô fez o possível e o impossível para sabotar a engrenagem assassina de Hitler. Apenas 2% dos entrevistados admitiram que seus antepassados consideravam o nacional-socialismo como algo “muito positivo” e só 4% disseram que seus familiares foram a favor do regime.
Engana-se quem pensa que tal quadro hipócrita seja resultado de uma má formação escolar. A recente pesquisa revela: os entrevistados com curso superior são os mais convencidos do papel positivo de seus parentes nos tempos negros. Desse grupo, até 30% dizem que seus pais ou avós ajudaram perseguidos judeus, e 15% apontam os familiares como parte da resistência da época.
É preciso ressaltar essa informação: mais de um quarto dos 80 milhões de meus compatriotas ajudaram os perseguidos! Os cerca de 300 mil judeus, que após 1938 ainda viviam na Alemanha, devem ter ficado desnorteados com tanta oferta de auxílio por parte de seus salvadores. Diante desses números, um professor judeu aqui da universidade comentou, com sarcasmo: “Puxa, muitos judeus foram tão bem escondidos pelos alemães que até hoje ninguém os encontrou de novo”.
Paralelamente a esse quadro de corajosa resistência e crônica oposição ao sistema, dissemina-se a convicção de que os parentes dos entrevistados “sofreram muito na Guerra” (65%), e também “viveram com espírito comunitário” (63%), o que mostra que persiste até hoje um dos argumentos centrais da propaganda nazista, retratando os alemães como uma comunidade de vítimas.
Estes números indicam, por fim, um outro fato muito curioso: o conhecimento histórico cognitivo e a certeza histórica emocional são duas coisas inteiramente diferentes. Justamente quando a pessoa está bem informada dos crimes nazistas é que aumenta a necessidade subjetiva de fabricar histórias familiares nas quais o avô ou a avó desempenharam os papéis de bons alemães.
Receio que a médio prazo, a cultura memorial alemã se encaminhe para a eliminação de Auschwitz, por exemplo. E nem a onipresença de monumentos e museus sobre o Holocausto hoje no país contradiz o meu temor: é exatamente quando a memória é fixada na forma de monumentos que ela perde seu significado. Monumentos, como já observara Robert Musil, são invisíveis: não perturbam em nada o tráfego e os motoristas nem tomam conhecimento da presença deles.
* Professor de psicologia social do Instituto de Ciências Culturais da Universidade de Essen, Alemanha

FONTE: AVENTURAS DA HISTÓRIA

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