Em quase toda a produção sobre a história do futebol brasileiro
encontram-se três momentos narrativos integrados ou amalgamados que falam da
chegada do futebol inglês e elitista ao Brasil, da sua popularização e do papel
central do negro nesse processo. O primeiro momento narra a chegada do futebol
e enfatiza a segregação dos negros e dos
pobres, o segundo relata suas lutas e resistências e o terceiro descreve
a democratização, ascensão e afirmação do negro no futebol (Soares, 1999, p.119).
Pré-jogo: apresentando o problema
Convido leitoras e
leitores para um ensaio. Ou ainda, para um treino numa alusão explícita ao
futebol. Por meio de uma genealogia do drible, este trabalho vai apresentar as
linhas mestras da filosofia afroperspectivista. Em outras palavras, a
relevância do conceito de drible para habilitar a legitimidade da produção
filosófica africana e afrodiaspórica a partir de uma genealogia do drible
no futebol brasileiro. Na história do futebol brasileiro os jogadores negros
sofreram inúmeras restrições por parte dos clubes, das regras de jogo e das
associações oficiais de futebol, o que teria, segundo diversas hipóteses,
gerado o drible brasileiro. Por outro lado, nos manuais e compêndios de
história da filosofia, a produção fora do que se denomina Ocidente tem tido
pouco ou nenhum reconhecimento. Com efeito, para uma significativa parcela de
historiadores(as) da filosofia, a produção filosófica africana praticamente
inexiste. Ou ainda, os povos negro-africanos sequer seriam capazes de filosofar.
O filósofo alemão Hegel é, entre outros, tais como Kant, um exemplo dessa
mentalidade racialista do século XIX:
A principal
característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de
qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis [...] negro representa, como
já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável [...]. Neles, nada evoca a
ideia do caráter humano [...]. Entre os negros, os sentimentos morais são
totalmente fracos — ou, para ser mais exato, inexistentes (Hegel, 1999, p. 83-84).
A epígrafe de Antônio Jorge Soares afirma que a literatura acadêmica e
jornalística, assim como a oralitura[1], sobre a história do futebol convergem para a ideia de que jogadores
negros (pretos e pardos)[2] não tinham espaço nos times de futebol
até a década de 1930 e, mesmo quando foram “aceitos”, a arbitragem tinha regras
diferentes de tratamento para negros e brancos. Uma fonte maravilhosa de piso
antropológico, sociológico e histórico da situação de jogadores negros é o
livro O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho.
Esse vigoroso trabalho foi publicado pela primeira vez em 1947 e recebeu mais
dois capítulos em 1964. Existem outros trabalhos a respeito e todos parecem
concordar com um aspecto: os árbitros não marcavam faltas de jogadores brancos
em jogadores negros, mas o inverso era rigorosamente punido.
“Quando começaram
a jogar o futebol por aqui, os negros não podiam derrubar, empurrar, ou mesmo
esbarrar nos adversários brancos, sob pena de severa punição: os outros
jogadores e até os policiais podiam bater no infrator” (Soares, 1999, p.
134-135). Pois bem, diante desse cenário a hipótese que se popularizou foi
simples, jogadores negros precisaram encontrar novos espaços e maneiras de
conduzir a bola que evitassem que eles esbarrassem nos brancos e fossem
punidos. Como os jogadores negros não podiam tocar nos jogadores brancos, a
hipótese foi o surgimento do drible como alternativa para que os jogadores
negros pudessem se movimentar em campo. O drible, neste caso, é uma invenção
negra. No entendimento de Mário Prata (1998), o drible é uma determinada
transposição dos passes e ginga do samba para o interior das quatro linhas do
jogo de futebol.
A primeira partida de
futebol em terras brasileiras data de 1874, o jogo foi uma exibição para a
Princesa Isabel. Em 1916, começa a efetiva profissionalização com a criação da
Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e a respectiva filiação à
Confederação Sul-Americana de Futebol (Comembol) e à Fifa (Federação
Internacional de Futebol). Nessa ocasião, apenas sócios de clubes, ou seja,
membros da alta sociedade podiam jogar, o que fazia do futebol um esporte muito
elitista. Gordon Jr. (1995) comenta que até 1918 era formalmente vedada pela
Federação Brasileira de Sports a inscrição de negros nos clubes de futebol.
O caso de homens
brancos de classe média e classe popular era bem diferente dos negros. Caso
aqueles tivessem um “padrinho” o acesso ao clube era possível porque bastaria
seguir as normas do clube, passando-se como um homem de “boa família”. Isso era
impossível para os negros interessados em jogar nos clubes de futebol. Somente
a partir de 1919 e 1920, alguns clubes começaram a aceitar jogadores negros. As
restrições impostas aos jogadores negros diferiam muito das que eram colocadas
aos brancos pobres.
Com efeito, brancos trajados com uniformes não tinham nada
que atestasse suas origens, o que conferia sua aceitação era o fenótipo
étnico-racial. Sem dúvida, os sócios em geral não aceitavam negros no time de
futebol, muito menos circulando livremente pelos clubes. Isso foi uma das
motivações dos sócios (brancos) para profissionalizar o esporte na década de
1930 nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, pois era mais confortável pagar
salários e torná-los funcionários.
O 1º tempo do jogo: a genealogia do drible no
futebol brasileiro
Na década de 1920, as
restrições impostas aos jogadores negros eram maiores nos clubes mais
elitistas. Por exemplo, o Fluminense no Rio de Janeiro aceitou o jogador Carlos
Alberto com a condição de que a maquiagem o tornasse “branco”; no Rio Grande do
Sul, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, fundado em 1903, só aceitou um jogador
negro em 1952, com a entrada do consagrado Tesourinha, ex-jogador do Vasco da
Gama e do Internacional. Não são raras as notícias referentes às maquiagens que
procuravam embranquecer os jogadores negros. Por outro lado, a popularidade de
clubes como o Bangu, o Vasco da Gama e o Botafogo, todos do Rio de Janeiro,
fortaleceu-se pela inclusão de jogadores negros. Na década de 1920, o Vasco da
Gama se notabilizou por ter sido vitorioso num campeonato no qual o seu elenco
era assumidamente multiétnico e plurirracial.
O clube do Vasco da
Gama foi o primeiro time campeão com jogadores negros. Negrito e Cleuci — dois
jogadores negros — marcaram os gols na final do Campeonato de 1923. Para Mário
Filho (1964), a conquista vascaína do campeonato da cidade do Rio de Janeiro de
1923 foi um motivo decisivo para o seu desligamento do clube da Liga de
Futebol. Existem outros exemplos de restrições de cunho racial. Em 13 de maio
de 1914, num jogo entre o Fluminense e o América, Carlos Alberto Fonseca,
ex-jogador do América, estava no elenco do tricolor. As restrições aos
jogadores negros era regra no Fluminense. Por isso, Carlos Alberto passava um
bom tempo fazendo uma maquiagem que servia de disfarce para deixá-lo “branco”;
mas, como era de se esperar, no decorrer da partida o suor fazia a maquiagem
ceder e ele aparecia como era: negro. O que fez a torcida do América gritar em
tom provocativo que o referido jogador era pó de arroz!
Arthur Friedenreich é
outro bom exemplo dos disfarces que todos os afrodescendentes empreendiam
dentro dos clubes na década de 1910. Friedenreich era paulistano, filho de uma
mulher negra brasileira e um estrangeiro branco alemão, jogou em vários clubes
de São Paulo, no Flamengo e fez 23 partidas pela seleção brasileira. O seu
ritual incluía alisar o cabelo, além de fazer uma maquiagem que contava com
muito pó de arroz. Com efeito, todas essas situações, a desfiliação do Vasco, a
restrição do Grêmio aos jogadores negros até 1952, a maquiagem dos jogadores
Carlos Alberto e Friedenreich, são exemplos de um ideal dos clubes em manter o
futebol como “coisa de branco”.
Conforme Mário Filho, as décadas de 1930 e 1940 foram o início da
“naturalização” da inclusão de jogadores negros nos clubes brasileiros, embora
por acordo tácito, a arbitragem continuasse usando “dois pesos e duas medidas”.
O racismo, que antes impedia que negros jogassem e que depois já “aceitava”
jogadores negros desde que parecessem brancos, nas duas décadas seguintes se
organizou mais em torno da arbitragem. As faltas dos brancos em negros não eram
punidas, enquanto as faltas de negros em brancos recebiam sanções severas. Pois
bem, aqui surge o momento para dar curso à nossa articulação chave. O que consta
na oralitura sobre futebol e relações étnico-raciais, tal como os relatos
gravados de Domingos da Guia[3], e se tornou objeto de pesquisa do documentarista moçambicano Victor
Lopes, é que a restrição informal imposta aos jogadores negros provocou os usos
dos passes do samba dentro de campo. O documentarista retoma e explicita a
hipótese que teria começado com Mário Filho.
A defesa aqui impetrada não recusa que o drible existisse fora do
Brasil; mas reivindica que a invenção do drible no Brasil inaugura um modo
distinto de driblar, o que pode ser entendido como a efetiva “invenção do
drible”, e que isso se deve à regra informal dentro de campo que retratava as
restrições étnico-raciais da sociedade brasileira. A hipótese é de que o drible
rateado, a mudança de ritmos com que a bola é conduzida “presa” e volta a ser
colocada em movimento, foi uma invenção de jogadores negros brasileiros. É
interessante notar que existem duas perspectivas acerca da etimologia da
palavra “drible”. Por um lado, dribble,que em inglês
significa babar e por extensão gotejar ou pingar, já aparecia no futebol em
1863. Ao mesmo tempo, existe a palavra dibo que na língua kikongo
significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, radical
da palavra “dibotar”, que significa discursar, palavrear. A minha interpretação
é que o drible derivado de dibo tem vários sentidos, tanto dançar quanto
palavrear. Sendo assim, podemos interpretar que o sentido de discursar em
Kikongo remete a dançar com as palavras, rodopiar com as letras ou ter molejo
com o que se diz para conduzir quem ouve para onde se deseja.
Num programa feito pelo jornalista Pedro Bial[4], o filme de Victor Lopes foi contestado por vários jornalistas. A tese
mais corrente é de que o drible teria nascido com o próprio futebol. Conforme
vários relatos, o jogador Charles Miller já driblava na Inglaterra. Mas uma
reportagem da imprensa na Copa do Mundo realizada na França em 1938 parece
reforçar a hipótese de Victor Lopes. O jornalLe Miroir de Sports disse que os jogadores brasileiros pareciam malabaristas; sobre Leônidas
da Silva foram elencadas uma série de expressões como: “diabo preto”,
“acrobata”, “dado a fazer piruetas”, capaz de “plantar bananeira”, capaz de
“saltar como carpa”. Todo esse repertório se referia aos dribles de Leônidas,
também conhecido como Diamante Negro, o inventor da “bicicleta”[5]. Ou seja, ainda que o drible existisse no futebol, um jogador negro
brasileiro surpreendia. Nós acreditamos que a surpresa se deve ao tipo de
drible made in Black Brazil.
Com efeito, nossa defesa é que o drible no Brasil feito pelos jogadores
negros nasceu com uma singularidade, ainda que o jogador branco brasileiro
Charles Miller também driblasse, devido à regra informal que permitia punição
aos jogadores negros que cometessem faltas contra os jogadores brancos e, por
isso, tornava importante não tocá-los. Domingos da Guia, exímio jogador da
seleção brasileira de 1938, foi eleito o melhor zagueiro da competição naquele
ano e numa entrevista foi categórico. Conforme arquivos da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ)[6], Domingos disse que tinha medo de jogar futebol porque assistia aos
jogadores negros serem agredidos por faltas ostensivas dos brancos sem
restrições da arbitragem. O relato de Domingos que segue elucida bastante o
cenário do futebol nesse período:
Ainda garoto eu tinha
medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu,
apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes (…) Meu irmão
mais velho me dizia: “Malandro é o gato que sempre cai de pé… Tu não é bom de
baile?” Eu era bom de baile mesmo, e isso me ajudou em campo… Eu gingava muito…
O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba
(Domingos da Guia, vídeo Núcleo/UERJ, 1995).
O ex-zagueiro da seleção disse que levou o samba miudinho para dentro de
campo, relatando que seus dribles eram a transposição dos passos de sambista
para dentro de campo. Em outras palavras, o corpo passou a ser usado
integralmente nas jogadas. Mesmo que a palavra tenha origem na língua inglesa,
o drible cunhado pelos pés (negros) brasileiros é mais herdeiro do dibo do que do dribble.
Vale a pena
recapitular os dois aspectos gerais da genealogia do drible no Brasil. O
primeiro é a regra informal, tácita e não registrada que foi a bússola da
arbitragem. O segundo aspecto, os usos dos passes do samba e quiçá da capoeira
dentro de campo como forma de finta, defesa e, ao mesmo tempo, tática de ataque
diante das limitações impostas pelas regras do futebol.
O 2º tempo: o conceito de drible na filosofia
afroperspectivista
A parte final deste
trabalho é a transposição do drible como quesito do futebol para um terreno
filosófico. Por que razões tomar o conceito de drible emprestado? Cabe
explicitar de início o que entendemos por filosofia afroperspectivista. A
expressão conceitual — filosofia afroperspectivista — surgiu a partir da
dinâmica de pesquisa do Grupo de Estudos de Filosofia Africana que integra o
Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), registrado
no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e sediado na Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Desde 2010, esse grupo tem se reunido para
realizar pesquisas que buscam recensear, conhecer e dar visibilidade às
produções filosóficas africanas e afrodiaspóricas no cenário mundial. O termo
afroperspectivista funciona de dois modos: 1) Um conceito guarda-chuva que
indica o conjunto de trabalhos realizados por filósofas(os) africanas(os) e
afrodiaspóricas(os), sobretudo, pesquisas que partem dos universos culturais
africanos ou têm esses universos como referências-chave; 2) Um projeto de
pesquisa na grande área de conhecimento da filosofia, que opera de modo
intercultural e é organizado por princípios que levam em conta a riqueza
cultural e a herança dos povos africanos no Brasil e no mundo da afrodiáspora.
Nessa segunda definição surge um trabalho de pesquisa que tem operado com
algumas questões específicas, entre elas, a do surgimento da filosofia.
A orientação deste trabalho está na comparação das restrições sofridas
pelos jogadores negros dentro do futebol brasileiro nas primeiras décadas do
século XX com a postura da historiografia filosófica “oficial” — dos manuais e
compêndios — que desconsidera a produção negro-africana. Nesse sentido, a
filosofia afroperspectivista é uma crítica à colonialidade do poder[7], ao epistemicídio[8], ao processo de invisibilidade das vozes que não são ocidentais. O
drible é o exercício de encontrar canais para a visibilidade do pensamento
filosófico africano, assim como da filosofia afrodiaspórica. Um traço do drible
é desvincular a filosofia dos seus modos de preservação e transmissão.
Omorogme
recomenda: “nós devemos distinguir entre filosofia e os modos de transmiti-la e
preservá-la. Reflexões filosóficas podem ser preservadas e transmitidas de
diversas maneiras” (Omoregbe, 1998, p. 70). O drible é um modo de encontrar
saídas, alternativas para a interdição de espaço. É, nesse caso, a
possibilidade de adentrarmos no exercício filosófico, encontrando e legitimando
a existência de modos de circulação de ideias filosóficas africanas:
Nós temos fragmentos
de suas reflexões filosóficas e suas perspectivas foram preservadas e
transmitidas por meio de outros registros como mitos, aforismos, máximas de
sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, especialmente, através da
religião [...] Além das mitologias, máximas de sabedoria e visões de mundo, o
conhecimento (filosófico) também pode ser preservado e reconhecido na
organização político-social elaborada por um povo (Omoregbe, 1998, p. 74).
Ao invés de submeter
o pensamento filosófico africano, assim como o afrodiaspórico, as mesmas formas
da filosofia ocidental, podemos operar com outras plataformas. Dito de outro
modo, se antes entendíamos que a filosofia só pode ser reconhecida em textos
que obedecem a uma determinada estrutura, diante das estratégias do drible é
plausível considerar que a filosofia pode estar registrada em formas diferentes
que não se organizam pelas normas de um texto de filosofia ocidental.
Pois bem, qual seria o primeiro argumento de uma filósofa ou filósofo
ocidental que acredita que a filosofia nasceu na Grécia? Sem dúvida, diria:
então por que chamar esse pensamento de filosofia? Aqui outro aspecto do
drible. Numa sociedade marcada pela colonialidade, a recusa da filosofia a
alguns povos precisa ser revisitada criticamente. Nós estamos de acordo com o
filósofo sul-africano Mogobe Ramose: a dúvida sobre a filosofia africana “é,
fundamentalmente, um questionamento sobre o estatuto ontológico acerca do
estatuto ontológico da humanidade de africanos” (Ramose, 2011, p.8). Para
Ramose (2011), a escravização negro-africana foi o resultado de um imperativo
prático que passou a satisfazer “logicamente” as necessidades psicológicas e
materiais dos colonizadores europeus. Em outros termos, a humanidade
negro-africana seria menor, inferior, inclusive (ou, sobretudo?), porque os
africanos não seriam capazes de produzir filosofia.
Afinal, o filósofo ganense
Anthony Kwame Appiah acerta em suas considerações ao dizer que: “‘Filosofia’ é
o rótulo de maior statusno humanismo
ocidental. Pretender-se com direito à filosofia é reivindicar o que há de mais
importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente” (Appiah,
1997, p. 131).
Na historiografia
filosófica hegemônica da antiguidade, os trabalhos africanos são
terminantemente desconhecidos ou “esquecidos”. Então, se faz necessário um
esforço de ruptura com esse esquecimento. O drible é a problematização da
filosofia como uma atividade exclusivamente ocidental, um exercício de
justificação da filosofia como atividade pluriversal. Vale explicitar melhor o
que denominamos, na esteira do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, de
pluriversal. Para Ramose (2011), o conceito de universo coube na ciência
moderna, a saber: um paradigma que tinha como referencial o cosmos dotado de um
centro e periferias. Em seu ensaio ele diz: “optamos por adotar esta mudança de
paradigma e falar de pluriverso, ao invés de universo” (2011, p. 10). Afinal,
se a pluriversalidade (Ramose, 2011) rompe com a dicotomia, podemos compreender
que o universalismo (europeu) não dá conta de todas as formas de fazer
filosofia, tal como nós não podemos reduzir a música enquanto expressão
pluriversal a um gênero como o jazz, a música erudita ou o samba. Em suma, o pluriversal
é um paradigma que inclui o universal, entendendo-o como um sistema local entre
outros. O pluriversal é a reunião das universalidades, dos sistemas locais que
se pretendem únicos, mas coabitam e coexistem com outros. É equívoco tomar a
filosofia como sinônimo de sua versão ocidental.
O conceito de drible,
por sua vez, é uma objeção com caráter propositivo. Primeiro, objeta e recusa a
invisibilidade da filosofia afroperspectivista — africana e afrodiaspórica — e
propõe o reconhecimento de outras plataformas para formulação e circulação da
filosofia.
Se, por um lado, o futebol foi um palco de restrições aos jogadores
negros no início do século XX, por outro, o mundo acadêmico, o circuito em rede
de produção de conhecimento (filosófico) tem permanecido blindado, seja em
maior ou menor grau, para o que não é ocidental. A filosofia afroperspectivista
tem sido negada pela história oficial da filosofia. O passe do miudinho foi
tirado das rodas de samba por Domingos da Guia para evitar a violência consentida
que jogadores negros sofriam. Do mesmo modo, a violência do racismo epistêmico
pode ser driblada através do reconhecimento das máximas africanas de sabedoria
de vida que existem há aproximadamente 3.000, 4.000 anos como enunciados
filosóficos que em nada devem às formulações ocidentais.
Como exemplo e conclusão, trazemos um trecho das Máximas de Ptah-Hotepcompiladas por Jacq (2004). O filósofo
egípcio, ignorado pelos manuais e compêndios de filosofia, viveu por volta de
2200 anos antes da Era Comum e deixou, antes dos primeiros filósofos gregos, um
conjunto de máximas filosóficas pouco conhecidas. Ele se ocupava de temas como
a liberdade e definia o coração como lugar dos pensamentos e das emoções, como
o filósofo Epicuro de Samos (314 a.E.C – 270 a.E.C) se ocupava de reflexões
sobre a arte de uma vida feliz e deixou a Carta a
Meneceu também chamada de Carta sobre a felicidade. Disse Ptah-Hotep:
“As palavras sábias são mais raras do que as pedras preciosas e podem provir
até de jovens escravas” (Jacq, 2004, p. 53).
Reconhece que a sabedoria, a
capacidade de pensar adequadamente é rara; mas, acessível a todas as pessoas. O
mesmo foi dito séculos mais tarde noMênon de Platão, quando Sócrates demonstra que um escravo consegue resolver um
teorema. O ligeiro exemplo está longe de solucionar o debate, mas dá inicio a
um novo encaminhamento.
Por fim, num futuro
próximo, em outros jogos, novas jogadas aparecerão. O esquema tático do jogo
permanecerá sendo considerar a pluriversalidade e os dribles que são inerentes à
atividade filosófica. Ptah-Hotep e outros filósofos antigos surgirão
detidamente comentados.
FONTE: Revista Z Cultural / Renato Noguera
* Renato Noguera é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), professor de Filosofia do Departamento de Educação e Sociedade
(DES) e do Colegiado de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e
Indígenas (Leafro) e do Laboratório “Práxis filosófica” de Análise e Produção
de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ.
[1] Conforme Juan José Prat Ferrer, “o conceito de oralitura se contrapõe ao
deliteratura ao se referir a
expressão oral (recitação, dramatização ou atuação) das produções artísticas
verbais” (FERRER, 2010, p. 26). As primeiras pessoas a trabalharem com o
conceito de oratura ou oralitura foram o linguista ugandense Pio Zirimu, além
de uma dupla nascida no Quênia, o escritor keniano Ngũgĩ Wa Thiong, professor
de literatura comparada da Universidade da Califórnia, e a professora de Artes
Micere Mugo. “Se a escrita é a ação e efeito de escrever, a oralidade é ação e
efeito de falar, se a literatura é a arte e a teoria da composição escrita
assim como o conjunto de obras produzidas de acordo com esta arte, a oralitura
é a arte e teoria da composição oral assim como o repertório de obras
produzidas de acordo com esta arte” (Ferrer, 2010, p. 27).
[2] O IBGE aplica estas duas categorias em suas pesquisas (pretos e pardos),
o conceito negro é usado como a soma de pretos e pardos. Para fins de
elucidação, a “distinção” entre pretos e pardos é a pigmentação, ambos são
afrodescentes. Esta explicação é necessária para que leitoras e leitores entendam
que não usamos aqui termos como mestiços e mulatos. Essas categorias (mulatos e
mestiços) aparecem em muitas referências bibliográficas sobre o assunto. Porém,
a nossa opção teórica e metodológica faz uso de três categorias: pardos (negros
menos pigmentados), pretos (negros mais pigmentados) e negros — o somatório de
pretos e pardos. Pretos e pardos são as categorias oficiais do Estado. Negros é
uma categoria que foi construída politicamente pelos movimentos sociais e
pesquisas acadêmicas antirracistas. Por isso, por jogadores negros se deve
entender a soma de pretos e pardos — as duas categorias oficiais do Estado
brasileiro.
[3] Domingos da Guia nasceu em 19 de novembro de 1912 e faleceu em 18 de
maio de 2000. Revelado pelo Bangu — seu nome integra o hino do Clube —, ele
jogou em times como Vasco, Nacional (Uruguai), Boca Juniors (Argentina),
Flamengo e foi zagueiro da Seleção Brasileira de Futebol. O relato foi
recolhido em um trabalho feito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), disponível em
www.ludopedio.com.br/rc/upload/files/052346_1233.pdf / www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.
[4] http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news/v/qual-a-origem-do-drible-no-futebol/1278014/ acessado em 20 de julho de 2012.
[5] Bicicleta no futebol é uma jogada em que o atleta fica de costas para o
gol adversário, gira o corpo e chuta a bola por cima da cabeça.
[6] www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.
[7] A colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a
diferença colonial, a periferia como natureza e a cultura ocidental, o
capitalismo e os seus dispositivos como “civilização” normativa e centro.
[8] Epistemicídio aqui é entendido como injustiça cognitiva que destrói
territórios epistêmicos não hegemônicos.
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