Produções materiais e tecnológicas dos povos
indígenas são fruto de uma complexa teia de saberes e significados
Para muitos povos indígenas
amazônicos, no início dos tempos não existia o fogo. Foi preciso roubá-lo dos
animais como a onça e o urubu-rei, que foram condenados a comer carne crua para
sempre. Mas era preciso sempre manter uma brasa acesa, do contrário, corria-se
o risco de perder o fogo. Para resolver esse problema, o homem aprendeu a
preparar as varetas para fazer fogo, e ficou independente.
No mito de origem do fogo, as varetas
igníferas, ou seja, que “carregam” o fogo, são ferramentas que representam a
emergência do homem como ser transformador do mundo. Depois vieram outras:
facas e machados de pedra, seguidos pela descoberta e a transformação do aço. O
“roubo” do fogo, a nossa primeira fonte de energia,representa o poder simbólico
do homem de transformar a natureza através da tecnologia.
As invenções tecnológicas da era
atual levaram o homem à lua e diminuíram as distâncias entre as sociedades
humanas através dos meios de transporte e da internet. Elas nos fizeram mais
resistentes às doenças, mas deixaram o planeta vulnerável a mudanças climáticas
devido ao uso incontrolado de recursos naturais e ao crescimento populacional.
Dependemos da natureza para obtenção da água, do petróleo e de outros recursos
usados na fabricação de produtos. No entanto, a especialização do homem,
principalmente após a revolução industrial, distanciou-o da origem dos
materiais usados nos objetos. Nas sociedades industriais, chegou-se a um nível
de especialização no qual cada ser humano, na sua profissão, é responsável por uma
etapa na fabricação de um produto, muitas vezes desconhecendo a origem das
matérias-primas utilizadas e as diferentes fases necessárias para esta
transformação.
Entre os povos indígenas e outras
comunidades que vivem em áreas rurais no Brasil, a distância entre a
matéria-prima e os produtos é pequena. Os conhecimentos tecnológicos
necessários à fabricação de objetos são dominados por homens ou mulheres, de
acordo com a sua idade e função social na comunidade. Assim, uma jovem indígena
aprende com a mãe, a avó e as tias a plantar e a colher o algodão, cuidar das
sementes, fiar e tecer redes para sua família. Ela é ao mesmo tempo cientista,
engenheira e artista.
A tecnologia indígena compreende
conhecimentos aplicados na transformação de recursos naturais em objetos ou
produtos utilizados com inúmeras finalidades: da alimentação e uso doméstico
até o transporte (por exemplo, fabricação de canoas), moradia, uso ritual
(festivais e pajelanças) e, crescentemente, a comercialização. O conjunto de
objetos produzidos pelos povos indígenas é chamado pela antropologia de
“cultura material”. Os objetos podem ser classificados de acordo com as
matérias-primas, as técnicas usadas em sua fabricação ou segundo o seu uso em
diversas categorias: adornos ou enfeites, arte plumária, brinquedos infantis,
caça, pesca, transporte, cerâmica, cestaria, instrumentos musicais, tecelagem,
habitação e uso ritual.
O conhecimento vivencial dos povos
indígenas distingue-se da ciência ocidental não indígena de várias maneiras.
Para os indígenas, não existe separação entre religião e ciência. As dimensões
espiritual, social, econômica e ecológica estão integradas na sua visão de
mundo, e fazem parte do dia a dia de suas relações sociais e com a natureza.
Não háseparação entre a produção de um objeto de uso diário e a produção
artística. Um cocar de penas de arara confeccionado por um homem kayapóé ao
mesmo tempo um adorno, um objeto ritual, uma obra de arte e um símbolo de
identidade étnica e política.
Os povos indígenas brasileiros usam
uma grande variedade de materiais encontrados na natureza para a produção de
suas obras e objetos de uso rotineiro e ritual. Esses recursos naturais podem
ser de origem mineral (pedras, barro para fabricação de cerâmica), vegetal
(fibras, folhas, raízes, sementes, troncos) e animal (penas, pelos, unhas,
dentes, escamas, ossos). Estão nos rios, nas florestas, nos campos, nas roças,
nas capoeiras (roças antigas) e em outros ecossistemas.
Um mesmo objeto pode ter várias
finalidades. Os homens kaiabi fabricam um tipo de cesto adornado com desenhos
gráficos que é usado pelas mulheres para guardar algodão. Ele é tecido com a
fibra do arumã, planta que possui seu “dono” ou espírito. Para colher o arumã,
os homens utilizam o facão e cortam a planta acima do primeiro nó, para que
rebrote. Em seguida, seguem-se diversas etapas de preparação da fibra. Os
homens trançam as peneiras de acordo com a técnica de trançado marchetado, com
desenhos gráficos em relevo, procedendo então à pintura do cesto com a resina
da casca de um tipo de jequitibá. O mesmo cesto pode também ser usado pelo pajé
para rezar um doente (uso ritual) e para a venda. Um objeto que parece
“simples” aos olhos de um observador externo possui um conjunto de valores,
técnicas e conhecimentos associados, como se em uma peneira fosse possível
trançar várias dimensões ou “teias de significados” materializados pela
tecnologia.
O conhecimento tecnológico é peculiar
a cada povo indígena, e está de acordo com suas tradições culturais,
inter-relações com a natureza, língua e história. No passado, muitos deles eram
adquiridos na guerra e no contato com outros povos indígenas, e transmitidos de
geração a geração por observação direta ou por via oral, através de mitos e
histórias. O conhecimento de como produzir e dominar o fogo, aprendido com os
ancestrais e “roubado da onça e do urubu-rei”, é aplicado anualmente na
agricultura indígena, envolvendo o processo de escolha do local, abertura da
roça, queima utilizando certos tipos de madeiras (como varetas de urucum),
seguidos de plantio, colheita e preparo de alimentos.
Dessa forma, atecnologia indígena
tece a natureza, a cultura e a sociedade. Um conjunto de fatores
inter-relacionados determina tanto a perda da habilidade e do conhecimento para
confeccionar certo item como a aquisição de uma nova técnica. Entre os
principais fatores dessas transformações estão os intercâmbios étnicos, a
influência da sociedade não indígena, o comércio, a substituição por produtos
industrializados, a transferência de territórios ancestrais para outras áreas e
a perda de acesso a recursos naturais.
Atualmente, vários povos têm
desenvolvido projetos para o resgate cultural de suas manifestações artísticas
e conhecimentos tecnológicos. Afinal de contas, manter esses conhecimentos em
tempos de profundas transformações socioambientais pode ser mais difícil do que
roubar o fogo da onça: apesar de termos as varetas para produzi-lo, precisamos
de esforço coletivo para manter as brasas acesas.
Saberes
indígenas no mundo industrial
Muitos conhecimentos tecnológicos da
atualidade têm suas raízes nas civilizações pré-colombianas, que praticavam a
engenharia de navegação, a arquitetura na construção de casas, a tecnologia da
produção de alimentos, e as técnicas de manufatura de cestos, cerâmica e
tecidos. Aproveitamos a mandioca para farinha e bolos e produzimos redes de
dormir comercializadas em todo o Brasil e no exterior, como aprendemos com os
povos indígenas desde o século XVI.
Vários povos indígenas brasileiros
têm desenvolvido projetos em colaboração com entidades nacionais e
internacionais para a divulgação, a revitalização e a inovação de seus
conhecimentos tradicionais. Existe um movimento crescente no sentido do
reconhecimento legal das obras indígenas como obras de arte, com o devido
tratamento legal e o pagamento de direitos autorais.
Em 1998, desenhos preparados por
várias artistas kadiwéus foram utilizados na reforma de prédios em um bairro da
antiga Berlim Oriental. Os direitos autorais foram todos transferidos para a
Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu, através da UFRJ. Este
registro é pioneiro no Brasil, e já começou a produzir mudanças na abordagem entre
profissionais da cultura e povos indígenas.
Saiba mais -
Bibliografia
PORTOCARRERO,
José Afonso B. Tecnologia
indígena em Mato Grosso: Habitação.
Cuiabá: Sebrae/Entrelinhas, 2010.
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indígena. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/USP,
1992.
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