Para a professora Angela Maria Gomes,
associar a escravidão antiga à sua forma contemporânea dimensiona de modo claro
a violência contra a dignidade humana
Nesta segunda-feira, 13 de maio,
celebra-se os 125 anos da Abolição no Brasil. A escravidão, porém, está longe
de acabar no país. Nesta entrevista exclusiva, Angela Maria de Castro Gomes,
professora do departamento de História do Brasil da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, defende a
importância de se chamar a atenção para esta violação que, apesar de
abolida oficialmente, continua presente, sob novas formas. Ela defende o
conceito de “trabalho escravo contemporâneo”, e afirma que sua dimensão
política e simbólica deve ser ressaltada. ”É inaceitável que pessoas ainda
trabalhem e vivam submetidas a esse tipo de condição”, diz.
O trabalho escravo
contemporâneo no Brasil está definido pelo artigo 149 do Código Penal e é crime. Ela ressalta que o conceito foi
estabelecido a partir do engajamento de atores sociais em uma
disputa política na sociedade brasileira, e deve ser valorizado por “fazer
um laço com a sociedade” e transmitir “de forma rápida e clara” como se dá a
exploração de milhares de pessoas no país.
Qual a importância de se usar o termo
escravidão contemporânea?
No dia 13 de maio essa questão volta de
uma maneira muito forte. Estamos falando de um fenômeno contemporâneo, que
significa a exploração sobre as condições de trabalho e de vida. Este
conceito é significativo porque reúne significados políticos e sociais muito
fortes. Essa designação não veio nem espontaneamente nem naturalmente. Foi, na
verdade, objeto de disputa e é importante falar em “trabalho escravo
contemporâneo” porque temos um histórico secular, em que a figura do escravo
materializa para a sociedade exatamente aquela pessoa que está submetida a
condições de trabalho e de vida sub-humanas. A designação é capaz de fazer
um laço com a sociedade, e é capaz de transmitir a ideia de forma rápida e
clara.
Qual é o
conceito de trabalho escravo?
O que se entende por trabalho escravo é algo que o próprio Código Penal define. Até 1940, este conceito não existia na legislação. Entrou em 1940 e foi mudado no ano de 2003. Isso aconteceu porque houve pressão e alianças entre agentes privados e públicos que lutaram para essa reformulação. Houve uma expansão do conceito. Durante bastante tempo, a ideia estava ligada à condição de submissão que implicava na perda de liberdade. Isso vinha de uma conceituação clássica do que é escravidão, que basicamente significava “supressão da liberdade”, quando um homem era propriedade de outro e, com isso, perdia a sua liberdade. A grande mudança extremamente eficaz no sentido de se poder reprimir e entender esse fenômeno novo é que o conceito de trabalho análogo ao de escravo hoje encobre igualmente as pessoas que estão submetidas a condições que são chamadas de condições degradantes e humilhantes de trabalho. Essas pessoas podem até ir e vir, mas a maneira elas estão trabalhando e vivendo é indigna para a pessoa humana.
A questão da dignidade é a principal
diferença?
Sim. Porque, a partir da segunda metade
do século XX, há uma transformação internacional no que se refere à compreensão
de formas de se tratar a pessoa humana. Pessoas não podem ser submetidas a
determinadas condições de vida e de trabalho. Não se pode retirar a dignidade
das pessoas.
Alguns
magistrados entendem que o trabalho escravo é apenas uma ofensa aos
direitos trabalhistas. Acompanhamos recentemente o caso de um juiz federal que negou o processo e não reconheceu a escravidão. O que pensa disso?
Durante muito tempo no Brasil não estava muito claro quem tinha a competência de julgar casos de trabalho escravo: se seria a Justiça Federal ou a Justiça Estadual. Mas ficou decidido que é a Justiça Federal que tem essa competência. Hoje não há dúvidas com relação a isso. Além disso, trata-se de um crime que ofende direitos do trabalho, e, portanto, também diz respeito à Justiça do Trabalho. Vale ressaltar que muitas vezes é a partir do desrespeito aos direitos do trabalho que se chega a localizar pessoas em situação de escravo e a estender essa ideia. É a ponta do iceberg.
Por que temos deputados e senadores que dizem que não existe trabalho
escravo e que reclamam constantemente de supostos abusos da fiscalização?
A situação é complexa, porque há grande empresas, inclusive multinacionais, envolvidas nessa prática criminosa. São interesses poderosos economicamente e politicamente, gente com voz no Parlamento. Uma das formas de se opor é exatamente dizer que está havendo “abuso” da fiscalização. Deve-se compreender isso dentro da dinâmica de resistência ao avanço dos procedimentos de fiscalização e de repressão. O trabalho escravo hoje é encontrado no campo, no interior do país, mas igualmente em áreas urbanas. É importante destacar que isso não está ligado somente a condições de trabalho “não modernas”. E a resistência se dá de formas variadas, inclusive com pistolagem. Há o caso dos auditores fiscais do MTE que foram assassinados na chamada Chacina de Unaí.
O trabalho escravo está associado ao
lucro então?
Exatamente. Há trabalhadores que acabam
não ganhando nada, ou, se ganham, o valor é absolutamente irrelevante.
Geralmente eles têm baixa qualificação profissional, alguns são imigrantes. Os
processos de endividamentos dessas pessoas começam, às vezes, com o custo do
deslocamento, muito antes de elas iniciarem efetivamente o trabalho. E
essas pessoas que não recebem nada são muitas vezes são vistas como
descartáveis. Algumas sofrem desgaste físico enorme e morrem. Mesmo com
liberdade de ir e vir, o trabalhador não aguenta depois de um tempo, exatamente
porque é humanamente impossível aguentar. Há casos de trabalhadores no corte de
cana que morreram pelo excesso de trabalho. Isso não pode acontecer no século
XXI.
Como prevenir aliciamento de pessoas ao trabalho escravo?
O próprio governo tem a lista com empresários e empresas flagrados, a"lista suja", que implica em restrições a
créditos governamentais. Também há iniciativas importantes da sociedade civil.
No setor do carvão, por exemplo, onde a exploração aparece junto de crimes
ambientais, o Instituto do Carvão Cidadão certifica que a origem desse produto
não envolve trabalho escravo e presta auxílio àquelas pessoas submetidas à
condição de escravo. É claro que políticas em relação ao trabalhador são
fundamentais para complementar e prevenir a questão. Os auditores, os procuradores
e os nossos magistrados vêm se empenhando em ações de propaganda, no sentido de
prevenir o aliciamento de pessoas e mostrar para os trabalhadores qual a forma
que se recruta para esse trabalho e que deve ser denunciada. As ações de
fiscalização avançaram nesse sentido. Começaram sistematicamente em 1995. Logo
vamos ter 20 anos de combate. Evidentemente não acabamos com a exploração, mas
hoje há muito mais gente que sabe que essa é uma prática criminosa.
O Brasil é modelo no combate à
escravidão?
O país tem agido corretamente e o
combate é política de Estado, o que é fundamental. Não se trata de uma política
de um governo específico. Muda o governo e continua a política. As ações de
auditores, procuradores, magistrados, as ONGs e sindicatos de trabalhadores não
foram suficientes para erradicar a escravidão, mas o efeito é positivo. É
claro que existem dificuldades, inclusive no Parlamento.
Poderia ser pior?
Não tenho a menor dúvida. Seria muito
pior porque evidentemente os interesses favoráveis à manutenção e ao
aprofundamento dessa prática teriam muito mais força. E é inaceitável que
pessoas ainda trabalhem e vivem submetidas a esse tipo de condição.
FONTE: Reporter Brasil
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