A série Mad Men leva milhões de telespectadores até a virada dos anos 1960 e mostra como essa época era repleta de costumes que hoje parecem absurdos
Grávida de 7 meses, uma jovem dona de casa fuma tranquila na cama. Na esquina, seus filhos e os do vizinho brincam com revólveres de chumbinho que ganharam no Natal passado. No centro da cidade, seu marido toma a terceira dose de uísque na mesa de trabalho, durante uma reunião com os colegas sobre como continuar fazendo propaganda de cigarros, agora que corre por aí a notícia de que eles causam câncer. Estamos em Nova York. E o ano é 1960.
Essas são cenas de Mad Men, um dos seriados americanos de maior sucesso dos últimos anos - a quarta temporada acaba de estrear no Brasil, no canal pago HBO. Donald Draper, personagem principal, é um proeminente diretor de criação na agência de propaganda Sterling Cooper. Ele e seus colegas trabalham na Madison Avenue, em Manhattan - vem daí o termo mad men, usado até hoje para definir os publicitários que se concentram por lá (sem falar no trocadilho "homens loucos", em inglês). A trama cheia de estilo, que já rendeu uma coleção de prêmios, mostra o florescimento do mercado publicitário nos Estados Unidos e o aquecimento do consumo, que fariam parte para sempre do american way of life, e, sobretudo, retrata uma coleção de costumes impensáveis hoje (ou, no mínimo, politicamente incorretos).
Até a década de 1950, o clima nos Estados Unidos, e em todo mundo, ainda era de conservadorismo, ingenuidade e repressão. Na série, desfilam belas secretárias - que Don Draper e colegas não se privam de assediar -, aparecem novidades assombrosas, como a máquina de copiar, e muito álcool destila reuniões intermináveis. As mulheres tentam driblar preconceitos para ocupar postos de trabalho até então reservados só para homens. As saias são compridas, e a liberdade, curta. Médicos não receitam a nova pílula anticoncepcional sem antes dar lições de moral. Estamos frente a frente com a geração que criou o ideal de felicidade americano. E então descobrimos: eles não eram nada felizes.
Vida real
Corriam os anos centrais da Guerra Fria. A disputa pela conquista do espaço entre os Estados Unidos e a União Soviética era tema de conversa na sala de casa. Os novos aparelhos televisores invadiam os lares dos americanos - em 1960, mais de dois terços das famílias já tinham um deles. No mesmo ano, John F. Kennedy derrota Richard Nixon nas urnas, após o primeiro debate presidencial televisionado da história.
Boa parte dos homens americanos voltara dos campos de batalha da Segunda Guerra (exaustos, porém vitoriosos) e queria agora a vida a que acreditava ter direito: uma família com uma esposa dedicada (hábil nos afazeres do lar) e filhos obedientes, uma boa casa no subúrbio e um trabalho que lhe desse possibilidades reais de ascensão social.
"Numa autoindulgência, os americanos se permitiam ser felizes. E ser feliz, naquelas circunstâncias, era permitir-se o conforto", afirma o historiador Antônio Pedro Tota, em Os Americanos. As linhas de produção que antes faziam tanques de guerra agora fabricavam geladeiras e outros produtos que prometiam melhorar a vida das pessoas. "Do carrinho do supermercado ao porta-malas de um Chevrolet, a prosperidade era comprada em pacotes fechados."
Era preciso vender. E vender até mais do que os americanos estavam dispostos a comprar. É aí que a publicidade, agora essencial para a indústria, começa a se reinventar.
"Foram anos de uma revolução criativa, que começou nos anos 1950 e se consolidou no início da década de 1960. Antes, as campanhas eram criadas em cima de fórmulas e pesquisa. Agora, a argumentação saía do racional e migrava para o lado emocional", diz o professor Heraldo Bighetti, da ESPM. Ele cita os publicitários americanos Leo Burnett, David Ogilvy e William Bernbach, cada um com sua agência, como os cabeças da revolução. Foi Burnett quem criou o caubói que deu cara aos cigarros Malboro. Se antes o produto era fumado em maioria por mulheres, a agência agora oferecia aos homens um personagem forte e uma história com a qual se identificar: o último herói americano, livre e destemido. Já Bernbach, fundador da agência DDB, uma das mais ilustres da Madison Avenue, foi o inventor da dupla de criação (redator e designer trabalhando juntos nos projetos), fórmula que até hoje é adotada.
O modo de produção dos anúncios mudou, e a relação entre a publicidade e os consumidores também. Parte importante do novo ideal americano era exercer a liberdade de consumo. A tarefa da publicidade não era mais divulgar as qualidades de um produto, mas garantir personalidade ao anúncio e uma conexão emocional com o consumidor. "Essencialmente, naquele momento, viramos consumidores primeiro e cidadãos em segundo lugar", afirma Natasha Vargas-Cooper, em Mad Men Unbottoned (Mad Men Desabotoados, em tradução livre, sem edição no Brasil). "Hoje, muitas vezes você nem percebe quando está olhando para um anúncio porque é como olhar para uma obra de arte."
Politicamente incorretos?
Os anos 1960 não foram revolucionários apenas para a publicidade. Pequenas revoluções culminaram com a explosão da contracultura nos EUA no fim da década e marcaram para sempre sociedades mundo afora.
Em 1957, o líder soviético Nikita Khrushchev chocou o planeta ao revelar os crimes cometidos por Joseph Stalin. A notícia causou desilusão entre os intelectuais de esquerda e um grande racha. Houve políticos e pensadores que permaneceram ligados à luta operária do marxismo tradicional, e houve aqueles - a maioria na Inglaterra e nos Estados Unidos - que formaram a "nova esquerda". Contrária aos marxistas autoritários típicos do pós-guerra, a nova esquerda se distanciou das lutas trabalhistas e ficou mais perto da transformação dos costumes, dando força à contracultura, ao movimento hippie, aos negros, aos índios e às feministas. Se a velha esquerda considerava os recursos naturais só um meio para explorar os trabalhadores, a nova marcou o início das preocupações com o meio ambiente. Com essas reivindicações políticas, apareceram novos padrões de atitudes moralmente aceitas. É o que hoje chamamos de "politicamente correto" - o primeiro registro do uso moderno dessa expressão é de 1970.
Essa transformação foi tão profunda que é difícil, agora, dar-se conta dela. É por isso que Mad Men choca. Num episódio, por exemplo, o protagonista Draper e sua família desfrutam um agradável piquenique à beira de um lago. Na hora de ir embora, sacodem a toalha e viram as costas, deixando, sem dó, todo o lixo para trás - reciclagem estava tão fora de cogitação quanto a eleição de um presidente negro. A discriminação racial é tema comum também. Comerciantes judeus que procuram a agência ainda são vistos com estranhamento. Se alguém aparece com uma namorada negra numa festa, provoca comentários generalizados. Na segunda temporada, um jovem publicitário descobre que um de seus clientes, uma fabricante de aparelhos de TV, é a preferida entre os consumidores negros. Resolve então atrair esse público nas propagandas. Ao propor a ideia, leva uma bronca dos chefes: seria uma sabotagem vincular uma marca aos negros. Para o diretor de Mad Men, Matthew Weiner, a série é ainda um "doloroso e preciso retrato do tratamento dado às mulheres no início dos anos 1960". É uma época em que solteiras com mais de 30 anos são motivo de chacota entre as colegas, divorciadas causam desconfiança e os psiquiatras ligam para os maridos de suas pacientes para relatar a sessão daquela tarde. No capítulo de estreia, a chefe das secretárias, ao ensinar uma novata a usar a máquina de escrever, diz: "Parece complicado, mas os homens que projetaram essa máquina a fizeram fácil o suficiente para as mulheres entenderem". Para o alívio das leitoras, no desenrolar da série, os costumes começam a mudar. Mas nenhum deles é tão distinto dos hábitos atuais quanto fumar. Em Mad Men, os cigarros estão acesos no escritório, em frente às crianças, na igreja, no avião, no médico. As agências de propaganda, depois de serem proibidas pelo governo de exibir anúncios sobre as vantagens à saúde, começam a aproximar o produto de valores como prazer e aventura. O cerco ao fumo aos poucos ganha força - a ponto de Draper, na quarta temporada, em uma estratégia comercial, escrever um artigo para o The New York Times, afirmando que sua agência não terá mais fabricantes de cigarro como clientes.
São mudanças do mundo publicitário que se refletiam na sociedade, e vice-versa. "Publicidade é baseada em uma coisa: felicidade", afirmam James South e Rod Carveth em Mad Men and Philosophy (ainda sem edição no Brasil). Ou, como diria o protagonista Don Draper numa frase que resume o período: "Felicidade é o cheiro de um carro novo. Felicidade é a liberdade sobre o medo, é um outdoor na beira da estrada que afirma com segurança: tanto faz o que você está fazendo, está legal. Você é legal".
Saiba mais
LIVRO
Os Americanos, Antônio Pedro Tota, Editora Contexto, 2009
Análise valiosa sobre a formação da sociedade americana.
DVD
Mad Men, Universal
No Brasil, as locadoras têm disponíveis a primeira e a segunda temporada. Aqui, a série é exibida pelo canal de TV por assinatura HBO.
FONTE: Aventuras na História / Gisela Blanco
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