No dia 1° de
setembro, foram comemorados os 125 anos do nascimento de Tarsila do Amaral
(1886 – 1973), eternizada, na história da arte, por ter criado a imagem-símbolo
do Modernismo brasileiro, o “Abaporu” (1928).
Contudo, Tarsila foi muito mais do que uma das
“musas” do movimento que sacudiu a arte brasileira na “Semana de 1922”. Tarsila
se fez como uma mulher genial, totalmente antenada com sua época, mas, também,
dotada de ousadia suficiente para desafiá-la.
Antropofagia na veia
Sempre que falamos dos Modernistas brasileiros, é
necessário resgatar o conceito de Antropofagia, que norteou as propostas e o
trabalho do movimento, e confunde-se com o próprio “Abaporu” (que nasceu como
um presente de Tarsila ao seu marido na época, o escritor Oswald de Andrade).
O nome (dado pelo também modernista Raul Bopp),
significa, em tupi-guarani, “homem que come carne humana” e serviu como
inspiração para o Manifesto Antropófago, no qual Oswald sintetizou as idéias
modernistas e propôs que o único caminho para a construção de uma arte
tipicamente brasileira seria a “canibalização” das estéticas e da cultura
dominante.
A idéia é simples, mas extremamente profunda: já
que não poderíamos fugir de nossa “herança” como país colonizado, ao invés de
nos submetermos aos padrões das metrópoles europeias, deveríamos agir como
canibais, nos apropriando da força do “inimigo”, deglutindo o que havia de bom
nesta produção e mesclando-a com nossas próprias raízes (negras, indígenas e,
também, imigrantes, já que estes constituíam uma enorme parcela da população
paulista no início do século 20).
E não é um acaso que seja exatamente Tarsila que
tenha dado “forma” para esta idéia, já que sua própria história tem um “quê” de
antropofágica.
Uma mulher emancipada
Nascida em Capivari, no interior de São Paulo, em
1886, em uma família burguesa com tradições enraizadas na aristocracia
cafeeira, a pintora, desde cedo, “deglutiu” os recursos e privilégios de sua
própria classe para subvertê-la e construir uma nova vida para si.
Antes dos 18 anos, Tarsila cumpriu à risca o
roteiro previamente escrito para as “moças de família”: estudou nas melhores
escolas e teve seu casamento “arranjado” com um primo de sua mãe, que também
fora o seu primeiro namorado.
O roteiro, contudo, voou pelos ares logo depois do
nascimento de Dulce, a única filha de Tarsila. Contrariando a tudo e a todos, a
futura pintora abandonou o marido e a vida no interior, mudando-se apenas com a
filha e uma coragem invejável para a capital, onde passou a estudar com o
pintor Pedro Alexandrino.
Na sequência, uma nova viagem a Europa, colocou
Tarsila em contato com os grandes mestres das vanguardas que sacudiam as artes
no final dos anos 1910: o Cubismo, de Picasso, Brake e Léger; o Futurismo de
Marinetti; o Surrealismo de Dali e Miró e o Dadaísmo, de Marcel Duchamp, dentre
outros.
Ao voltar ao Brasil, poucos meses depois da famosa
“Semana de 1922”, tanto sua obra quanto sua vida eram, literalmente, outras.
Algo que se intensificou ao formar, juntamente como Oswald de Andrade, Menotti
del Picchia, Mário de Andrade e Anita Malfatti um dos coletivos mais importante
da história da arte brasileira, o “Grupo dos Cinco”.
E com o mesmo ímpeto que produzia rupturas com a
“ordem e a tradição” no campo das artes, Tarsila foi revolucionando sua própria
vida. Ainda em 1922, apaixonou-se por Oswald. Anos depois, um novo romance, com
psiquiatra socialista Osório César, a levou a União Soviética, numa experiência
que marcou imensamente sua obra, na chamada “Fase Social”. Nessa mesma época,
tomada pelos ideais revolucionários (e movida pela necessidade) trabalhou, em
Paris, na construção civil, como pintora de paredes e portas. Num terceiro
casamento, Tarsila, desprezou mais uma convenção, unindo-se ao escritor Luís
Martins, cerca de vinte anos mais novo que ela.
Toda esta ousadia, fez com que a poeta Patrícia
Galvão, a “Pagu”, afirmasse que Tarsila foi fundamental na “emancipação mental”
das mulheres, ajudando todas elas a pensar o mundo não sob a ótica de “seus
homens”, mas a partir de suas próprias existências e necessidades.
A arte de expressar mudanças
Para compreender a obra de Tarsila é necessário
lembrar-se do que estava ocorrendo no “cenário” em que pintora viveu: a cidade
de São Paulo. Quando a pintora nasceu em 1886, a cidade não tinha sequer 60 mil
habitantes. Mas, em 1920, saltou para 570 mil e, vinte anos depois, no auge do
Modernismo, chegou a cerca de 1,3 milhão.
Foi nesse contexto que a obra de uma burguesa “caipira” (como ela
carinhosamente chamada pelos amigos) foi, pouco a pouco, incorporando as coisas
da terra, a confusa urbanização de nossas primeiras metrópoles e a cultura e
costumes de povo brasileiro.
Neste sentido, talvez, “A negra” (pintada em Paris,
em 1923, sob forte influência do Cubismo) e “Operários” (de 1933, onde é
possível ver ecos da obra de Picasso) sejam exemplos simbólicos.
No primeiro, exemplar da chamada fase
“Antropofágica”, as lembranças das amas-de-leite de sua infância aristocrática
são canibalizadas e transformadas numa figura cuja opressão e o abuso não
escondem a dignidade e força destas mulheres. Na segunda, surgem os muitos
tipos e raças que compõe a classe operária brasileira.
E, como a livre busca por novas formas de expressão
também foi um característica fundamental da artista, não podemos nos esquecer
de suas incursões pelo completo surrealismo, como no excepcional “O ovo” (ou
“Urutu”), no qual símbolos de nascimento, morte e renovação assumem as
estranhas forma de uma serpente em torno de um ovo gigante.
Obras que, mesmo quem não “entende” de arte, reconhece como sendo de
Tarsila. Exatamente porque traduzem aquilo que o crítico de arte e militante
trotskista Mário Pedrosa destacou como a principal contribuição do Modernismo:
“foi pela consciência do seu internacionalismo modernista que o movimento chegou
ao seu nacionalismo embravecido”.
FONTE: OPINIÃO SOCIALISTA / Edição
nº 431
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