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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Duas revoltas e o mesmo propósito: o Rio de hoje e a Guerra do Vintém contra o aumento da passagem







Historiadores debatem semelhanças de protestos atuais com o movimento deflagrado pelo aumento do bonde

Em primeiro de janeiro de 1880, os cariocas inauguraram, por assim dizer, uma nova modalidade de protesto na cidade: a manifestação social. O motivo era bem claro, a cobrança de uma taxa de 20 réis (ou um vintém, a menor moeda que existia na época) sobre um dos principais meios de transporte urbano de então, o bonde puxado a burros. A despeito de reclamações nos dias anteriores, no primeiro dia da vigência do novo imposto, a maioria das empresas simplesmente o repassou para a passagem, atingindo em cheio o bolso dos menos favorecidos.

A revolta foi generalizada e rapidamente tomou as ruas do Centro em forma de protesto espontâneo, amalgamando outras insatisfações e ganhando o apoio de diversos setores, entre eles a classe média dos funcionários públicos e também a ‘tropa mais barra-pesada do Centro e da zona portuária’, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, da UFRJ. Inicialmente pacífica, segundo os jornais da época, a manifestação descambou para a violência diante da ação truculenta da polícia, munida com os longos e grossos cassetetes conhecidos como ‘bengalas de Petrópolis’.

Pelo menos três morreram
O povo atacou os policiais com paralelepípedos arrancados do calçamento, destruiu trilhos, espancou condutores, virou bondes, esfaqueou animais. A polícia respondeu com mais violência, abrindo fogo contra os manifestantes, e os protestos acabaram se estendendo até o dia 4. Houve saques, roubos e depredação do patrimônio público por várias ruas do Centro, resultando num saldo de pelo menos três mortos e vários feridos.

Tirando os burros, a semelhança com o movimento que ganhou as ruas há duas semanas é grande, segundo historiadores, e sua análise, dizem, pode colaborar para a compreensão do fenômeno atual - um dos maiores desafios para políticos, cientistas sociais e jornalistas, que se esforçam para entender, afinal, o que está acontecendo no país e por quê.

Para José Murilo de Carvalho, há semelhanças entre os dois movimentos, para além do valor do aumento, de 20 réis e de 20 centavos.

- Passagens, tanto em 1880 como hoje, pesam no bolso dos usuários. O ato de aumentar foi um bom gatilho então e é agora - afirma o historiador.

Segundo o historiador Marcos Breta, também da UFRJ, os transportes urbanos sempre foram um dos principais motivos de distúrbios populares no Rio de Janeiro.

- É um ponto muito sensível porque envolve praticamente todo mundo; é o sistema nervoso da cidade - diz. - E para quem tem um orçamento apertado, 20 réis ou 20 centavos pesam no bolso. É um erro achar que não.

O distanciamento partidário dos manifestantes é apontado por Sandra Graham, no artigo ‘O Motim do Vintém e a cultura política no Rio de Janeiro - 1880’, na Revista Brasileira de História, como uma marca dominante daquela revolta. Segundo ela, os protestos se converteram numa ‘fonte de poder até então nunca utilizada’, capaz de transformar a ‘violência da rua’ em parte integrante da ‘equação política’ e, assim, ‘arrastar a política das salas do Parlamento para as praças da cidade’.

Como apontam analistas hoje, se alguma certeza se pode ter é que as manifestações deixaram muito claro o distanciamento entre povo e governo.

De fato, o imposto de 1880 foi imediatamente revogado como resultado direto do movimento, bem como o aumento das passagens de ônibus na semana passada.

Os atos de vandalismo de parte dos manifestantes e a violência policial são outras semelhanças apontadas por José Murilo de Carvalho.

- Em 1880, houve quebra de bondes e destruição de trilhos. Finalmente, a violência foi agravada pelo ato insensato do comandantes da tropa do Exército destacada para conter os manifestantes - relembra. - No Largo de São Francisco, atingido por uma pedra atirada por um manifestante, ele deu ordem de fogo, da qual resultaram mortos e feridos.

Para Bretas, autor do livro ‘A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro’, a polícia hoje é mais bem preparada do que jamais foi, embora ainda haja um longo caminho a percorrer.

- Tradicionalmente, a polícia é muito mal preparada e também muito mal vista pela população. Ela sempre foi muito odiada - explica Bretas. - Oriunda de um mundo escravista, ela é vista como aquela que pode bater nas pessoas, que é violenta em relação ao trabalhador e aos que não têm recurso. Por sua vez, os policiais eram recrutados à força, eram mal preparados, mal pagos e também chicoteados por seus superiores.

Tradição escravocrata
José Murilo de Carvalho concorda.
- O grande inimigo das manifestações populares era já naquela época a polícia. Seguramente, nossas polícias continuam não sabendo lidar com essas manifestações - sustenta. - Desde a Primeira República, nossas polícias foram militarizadas, fato que se exacerbou durante a ditadura. Sua mentalidade e seu treinamento têm que ser reformados.

A ditadura militar, na análise de Bretas, capitalizou formas policiais já consagradas, mas que sempre existiram. Talvez, diz, não causassem tanto choque por seguirem uma tradição escravocrata e serem dirigidas a classes menos favorecidas.

- A gente só começou a estranhar na época da ditadura porque começaram a bater na classe média - opina o historiador. - O grande ganho do movimento pós-ditadura é a noção de que os direitos humanos são para todo mundo.

FONTE: O GLOBO

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