Após 21 meses de guerra, dom Pedro I garantiu a unidade do território. Até na moda, se valorizava a identidade do país. O brasileiro descobriu o duplo emprego e a primeira Constituição lhe garantiu a liberdade de culto e de imprensa
Perto das 16h30 de 7 de setembro de 1822, um rapaz de 23 anos alcançava o alto de uma colina ao lado do riacho Ipiranga, nos arredores da vila de São Paulo, seguido de alguns acompanhantes. Era o príncipe regente dom Pedro, montado numa mula, coberto de poeira e com as botas sujas de lama. A viagem fora mais uma vez interrompida pela diarreia incômoda que o perseguia desde a partida de Santos, antes do amanhecer. O alferes Francisco de Castro Canto e Melo, que vinha de São Paulo com notícias dramáticas, alcançou a comitiva, prestes a retomar o curso. Antes que ele desse seu recado, porém, chegaram a galope dois mensageiros do Rio de Janeiro. Traziam cartas de José Bonifácio de Andrada e Silva, da princesa Leopoldina e do cônsul britânico na capital, Henry de Chamberlain.
O sucessor do trono português não podia esperar novidade pior. Lisboa havia cassado sua regência sobre a colônia e anulava suas decisões anteriores. Um membro da comitiva, o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, relataria quatro anos depois o que viu naquela tarde: "Dom Pedro, tremendo de raiva, arrancou das minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e os deixou na relva. (...) Caminhou alguns passos, silenciosamente. De repente, estancou já no meio da estrada, dizendo-me: ‘(...) As cortes me perseguem, chamam-me de rapazinho, de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal’". Minutos depois, diante da guarda de honra que o esperava mais à frente (leia acima), desembainhou a espada para determinar: "Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou Morte!", descreveu o chefe da guarda, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo.
Moda tupiniquim
Poucos meses depois, nas principais cidades do novo país, muitos homens começaram a mudar alguns de seus hábitos. O deputado baiano Cipriano Barata, por exemplo, passou a se vestir exclusivamente de algodão brasileiro e a usar chapéus feitos de palha de carnaúba - no que foi rapidamente imitado. Os nacionalistas mais empolgados penteavam o cabelo de forma a deixar uma risca definida no meio da cabeça. Era a chamada "estrada da liberdade", uma forma de simbolizar os caminhos abertos pela Independência. O uso do cavanhaque, incomum entre os portugueses, também foi adotado para marcar diferença. De uma hora para outra, pegava mal fumar os adorados charutos cubanos - era obrigatório valorizar o produto nacional. Cachimbo, nem pensar, pois tornou-se símbolo dos exploradores europeus. Exagero? Muitas famílias trocaram seus sobrenomes de batismo por expressões indígenas. Um ramo da família Galvão, de Pernambuco, passaria a se chamar Carapeba. O jornalista, advogado e político negro Francisco Gomes Brandão, um dos fundadores da Ordem dos Advogados do Brasil, adotou o nome Francisco Gê Acaiaba de Montezuma (homenagem também aos astecas).
Os modismos foram só a vitrine mais singela das transformações na vida nacional - iniciadas, é verdade, em 1808, após o desembarque da família real. A terra pela qual dom Pedro se apaixonou a ponto de romper com Portugal (não sem antes implorar ao pai dom João VI, em 1821, para que lhe poupasse do posto de príncipe regente. Leia mais à pág. 32) reagiu com empolgação à sensação de autonomia. Quando deixou o Rio de Janeiro, em 1831, o soberano havia legado uma nação ainda turbulenta politicamente, mas já estabelecida como Império do Brasil. O cenário que encontrou às vésperas do Grito do Ipiranga, escreve Laurentino Gomes em 1822, indicava que o país de 4,5 milhões de habitantes "tinha tudo para dar errado: de cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos, índios ou mestiços. Era uma população pobre e carente de tudo. O medo de uma rebelião escrava pairava como um pesadelo sobre a minoria branca. Os analfabetos somavam mais de 90% dos habitantes".
Confronto
Em importantes cidades, a novidade significou a realização literal do lema "Independência ou Morte". Nas ruas, defensores do Brasil e de Portugal se estranhavam e, não raro, discutiam e se agrediam. Em alguns lugares, era preciso ter coragem para aderir à onda do cavanhaque. Em Salvador, em 1824, um padre se recusou a prosseguir com o cortejo fúnebre enquanto o defunto não fosse barbeado. Bahia, Piauí e outras províncias pegaram em armas para garantir a autonomia brasileira e a unidade do território nacional - desfecho diferente do que ocorreu nas colônias vizinhas, que acabaram fragmentadas. A adesão ao comando do imperador, porém, não foi automática em todas as regiões. Rachas provincianos somavam-se à luta com os portugueses. Somente Rio, São Paulo e Minas Gerais aceitaram de pronto as ordens de dom Pedro. Esse processo foi mais lento sobretudo no Norte, no Nordeste e no Sul (veja quadro à pág. 28). A Guerra da Independência, iniciada em fevereiro de 1822, durou 21 meses e matou de 2 a 3 mil pessoas. "Em 1825, o governo brasileiro sequestrou os bens de portugueses que ainda contestavam a independência no Rio, na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão e no Grão-Pará. E os intimou a deixar o país", diz Isabel Lustosa, historiadora ligada à Fundação Casa de Rui Barbosa.
O confronto acabou de afundar as finanças quase falidas do novo governo, limitando investimentos urgentes e gerando inflação. Entre 1825 e 28, ela dobrou. Só a dívida externa superava 1 bilhão de reais em valores atualizados.
A infraestrutura das províncias mais afastadas da capital não tinha mudado muito desde a chegada de dom João. Ainda se dormia em redes e esteiras, se comia com a mão e se andava em ruas escuras e estreitas - mesmo no Rio de Janeiro, a iluminação a gás só estrearia em 1860. Mas as diferentes regiões já tinham mais contato com os acontecimentos no centro de poder. Dom Pedro I continuou a abrir estradas, que passaram a ligar a Bahia a Pernambuco, Minas Gerais a Goiás, o Grão-Pará ao Maranhão.
Nas maiores cidades, uma nova classe de trabalhadores se desdobrava com mais de uma ocupação, algo inédito depois de três séculos de controle estrito das atividades profissionais e das fontes de renda dos súditos de Lisboa. Barbeiros eram músicos nas horas vagas, pedreiros cortavam cana, advogados mantinham lojas, médicos davam aulas.
As mulheres também se viravam bem. Cozinhavam e costuravam para a família e ainda vendiam nas ruas quitutes, toalhas e roupas com a ajuda de um ou dois escravos. "A Independência dá um novo dinamismo às províncias. As pessoas têm uma grande mobilidade social, econômica e cultural. Escravos e livres se movimentam muito e exercem atividades econômicas variadas. Surgiu uma primeira geração de ex-escravos livres. E eles, em especial as mulheres, ganharam um grande poder com a possibilidade de se casar com brancos e com a liberdade para exercer diversas atividades econômicas simultâneas", diz Eduardo Franco Paiva, historiador e professor da UFMG. "Por outro lado, a chegada de escravos, que continuavam sendo vendidos em grandes quantidades no Brasil, manteve um grande intercâmbio cultural com a África. Também havia contato com estrangeiros de outros lugares."
Apesar da grande desigualdade social, a miséria e a fome não eram tão comuns - diferentemente do que acontecia sobretudo no interior em tempos de seca, como a que assolou o sertão nordestino em 1825 e levou à primeira grande onda migratória interna. No Sudeste, as indústrias incipientes ganharam fôlego - especialmente fábricas de barcos, pólvora e tecidos. A produção de algodão, café e gado ocupava cada vez mais espaço, em detrimento do açúcar e da mineração. Mas as transformações mais radicais aconteceram mesmo na sede do Império: o Rio de Janeiro.
A capital
Sob o impacto dos 13 anos de estadia da corte, tudo mudou na cidade. A população saltou de 43 mil habitantes, em 1799, para 79 mil, em 1821 (ou 110 mil com a área rural). A capital já tinha uma primeira geração de médicos formados no Brasil, nas faculdades de medicina do Rio e de Salvador. Em uma época de condições sanitárias precárias, cujo sistema de esgoto consistia em grandes latões de dejetos carregados por escravos, esses doutores começavam a substituir os barbeiros com suas sanguessugas. Era uma forma de reduzir a mortalidade em geral, o impacto das mortes no parto e, principalmente, das "febres de março", que faziam diversas vítimas todos os anos. "Sistematicamente, as mortes eram bem superiores aos nascimentos. A cidade crescia graças apenas às migrações de pessoas que para lá eram atraídas. Mas, no geral, a população foi sendo beneficiada por todas as mudanças", diz Maria Luiza Marcilio, professora da USP.
Havia um afluxo grande de estrangeiros. Em 1818, os suíços formaram a primeira colônia de imigrantes não portugueses em Nova Friburgo. Apesar da falência em 1821, o Banco do Brasil já havia ajudado a alterar a economia da cidade, que, até a década de 1810, vivia basicamente do escambo. O porto do Rio concentrava a metade do comércio exterior nacional, sobretudo embarcando café (que, em 1840 somava quase 50% de toda a pauta de exportações) e importando produtos ingleses inéditos por aqui, de tecidos a lampiões. As pessoas rapidamente se acostumaram a se vestir mais de acordo com a moda europeia (mesmo escravos adotaram ternos, mas não podiam calçar sapatos. Os pés descalços denunciavam sua condição). A língua francesa se tornava mais comum. No começo dos anos 1830, a rua do Ouvidor já estava tomada por lojas francófonas (leia à pág. 30).
Faltaram soldados nativos para as lutas de independência nas províncias, mas as escolas da Guerra e da Marinha constituíam uma crescente classe de militares. A população se acostumou com facilidade a resolver suas pendengas na Casa de Suplicação do Rio, criada por dom João VI, origem do Supremo Tribunal Federal. O Teatro São João, a Biblioteca Real e os jornais locais faziam a vida cultural ficar muito mais diversificada e acessível, a ponto de até mesmo alfaiates manterem seu próprio veículo de comunicação. Em 1826, o surgimento da Academia Imperial de Belas-Artes tirava os desenhistas dos quartéis, onde eles se limitavam a rabiscar plantas de terrenos.
Os pianos eram uma peça obrigatória nas casas mais ricas e o imperador dedicava tempo às composições musicais. Em carta ao pai, o rei Francisco I da Áustria, a imperatriz Leopoldina escreveu: "Envio-vos nesta ocasião uma Missa de Neukomm (...) que merecerá sem dúvida o vosso bom acolhimento. O meu Marido também é compositor e faz-vos presente da Sinfonia e Te Deum de sua autoria; falando a verdade é um tanto teatral, que é defeito de meu Marido". Aluno de Joseph Haydn e colega de estudos de Ludwig van Beethoven, o maestro Sigimund von Neukomm vivia no Rio desde 1816. A influência dessa vida pujante era tal que ganhava importância o sotaque carioca, mais aportuguesado e menos marcado por expressões indígenas do que no resto do país. "Muito antes ainda (do advento) da televisão, os habitantes do Rio já influenciavam a fala dos habitantes das outras províncias", escreve o historiador Luiz Felipe de Alencastro em História da Vida Privada no Brasil.
A Constituição
O Primeiro Reinado, claro, foi um período de intensa atividade política. A elite se dividia em várias correntes, a começar por monarquistas e republicanos (que em 1822 se aglutinaram em torno de dom Pedro para confrontar as cortes portuguesas - grandes responsáveis pelo processo que levou à Independência). A Assembleia Constituinte, instalada em maio de 1823, seria dissolvida em novembro, mas, em 1824, o imperador promulgou a primeira Constituição do país (considerada até liberal para a época). O Poder Moderador dava a ele autoridade sobre os demais poderes, mas a Carta garantiu liberdade de culto, de imprensa (em termos, pois havia determinadas perseguições) e deu outro status à figura do eleitor. Homens maiores de 25 anos, livres, alfabetizados e com renda de 100 mil-réis escolhiam os cidadãos que podiam votar e ser votados desde que atendessem a certos requisitos. Os religiosos seriam valorizados - até porque eles representavam parte considerável da ínfima parcela alfabetizada da população. Na década de 1820, eles eram 23% de todos os deputados. Os padres raramente usavam batinas, mantinham negócios e, com muita frequência, mulher e filhos.
As discussões a respeito dos rumos do novo país não ficavam restritas às elites (embora pelo menos parte dela tenha feito valer sua vontade, evitando o fim da escravidão, por exemplo). "A população estava longe de estar a reboque das camadas dirigentes", escrevem os historiadores Gladys Sabina Ribeiro e Vantuil Pereira em O Brasil Imperial: "O povo foi ator político fundamental na trama do Primeiro Reinado, tanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando mecanismos formais, como petições, queixas e representações". Os debates da constituinte foram acompanhados por populares, que gritavam palavras de ordem pedindo direitos civis e apresentavam por escrito centenas de sugestões aos deputados. Com o desmonte da assembleia, o intendente de polícia Estevão Ribeiro de Resende mandou seus homens às ruas para apreender os panfletos com chamados à revolução. Negros e mulatos eram a maior preocupação das autoridades - se reuniam em tabernas nos arredores da cidade, área cheia de quilombos. Um grupo chegou a fundar um "Club dos Malvados" com motivações políticas e raciais. Já liberais radicais organizaram um atentado contra o imperador. Na noite em que assinou a Constituição, ele e a família foram ao teatro. Um grupo tocou fogo em poltronas, mas ele saiu ileso.
O rei voltou a enfrentar resistência política intensa dos deputados. Seus vínculos com Portugal, que vivia um período turbulento, incomodavam os brasileiros. A derrota na Guerra da Cisplatina, em 1828, havia afetado seu prestígio, já abalado pelos escândalos de alcova. Em 1831, dom Pedro voltou a dissolver seu ministério. Foi o estopim para uma série de manifestações populares, que culminaram com a família real abandonando o Rio na surdina. Em seus últimos três anos de vida, porém, ele mudaria também os rumos de Portugal.
O sucessor
Dom Pedro I indicou imperador o filho de 5 anos e deixou como tutor um dos patronos da nação, José Bonifácio. O Brasil mergulharia numa década de revoluções e turbulências, até que dom Pedro II assumisse o cargo e garantisse a estabilidade política (ao menos temporariamente) não alcançada pelo pai.
A História reconheceria, porém: Pedro de Alcântara Francisco foi um dos nomes mais importantes da trajetória do país. Não se limitou a garantir a independência do Brasil e a unidade do território. Com ele, despontava uma nação com identidade própria. Dali em diante, a verdadeira transformação ocorreria com o fim da escravidão, em 1888. No ano seguinte, seria proclamada a República.
Longe do centro
A vida tumultuada nas províncias
O Grito do Ipiranga ecoou de modo diverso nos 8,5 milhões de km2 que formavam o Brasil. Na Bahia, no Piauí, no Maranhão, no Grão-Pará e na Cisplatina, os defensores da independência pegaram em armas contra portugueses e aliados. Apesar da falta de recursos, os "brasileiros" (partidários da causa nacional, inclusive mercenários estrangeiros) venceram. Mesmo após a Guerra da Independência, dom Pedro teve de enfrentar levantes de províncias que queriam autonomia, a exemplo da sufocada Confederação do Equador, a partir de Pernambuco, em 1824. Já a Cisplatina conseguiu desmembrar-se e virou o Uruguai em 1828. Os conflitos aumentavam a inflação e castigavam os moradores.
MINAS GERAIS
A província e o centro-oeste do país ganhavam pujança econômica com a produção de carne, leite, tecidos e outros itens vendidos para o Rio de Janeiro. Moradores migraram para o campo.
RIO GRANDE DO SUL
Os gaúchos, que falavam quase um "portunhol", aceitaram a Independência, mas perderam com a separação da Cisplatina. Entre 1835 e 1845, romperiam com o Brasil.
GRÃO-PARÁ
Entre 1822 e 1823, a província se dividiu ao meio. A vitória dos imperiais não cessou os conflitos. Em 1835, Belém ficaria sitiada durante a Cabanagem.
PERNANBUCO
Foi convulsionado por movimentos separatistas e de caráter republicano. Mas, no Natal, a política dava lugar a festas ao som de lundu, o som mais popular na região.
BAHIA
Após a Guerra da Independência, aos poucos o custo de vida caiu em Salvador. Mas a Bahia ainda enfrentaria tensão com uma revolta em 1832.
Rio imperial
Capital foi o retrato das transformações pós-1822
"Morte ao traidor!"
Protestos e enfrentamentos entre aliados e adversários de dom Pedro ganharam as ruas do centro, em 1831. O imperador abdicaria do trono no dia 7 de abril e iria para Lisboa.
Próspero e variado
A rua Direita reunia o comércio de luxo, assim como a do Ouvidor, repleta de produtos franceses. A proximidade com o porto, por onde passava 80% da economia do país, facilitava as transações.
A "nova" economia
O café e o algodão ganhavam espaço na economia do país, que tinha indústrias incipientes no Rio. Mas a escravidão ainda era a regra. Alguns escravos seguiam a moda europeia.
Saiba mais
LIVROS
1822, Laurentino Gomes, Nova Fronteira, 2010.
Serviu de base para esta reportagem. O jornalista e autor de 1808 explica a Independência e o reinado de dom Pedro I.
História da Vida Privada no Brasil - Volume 2, Luiz Felipe de Alencastro, Companhia das Letras, 1997.
Em oito artigos, apresenta o cotidiano do país ao longo do século 19.
O Brasil Imperial - Volume 1, Keila Grinberg e Ricardo Salles, Civilização Brasileira, 2009.
Retrata a situação das maiores províncias desde a chegada de dom João VI até a volta de dom Pedro I a Portugal.
FONTE: AVENTURAS DA HISTÓRIA / Tiago Cordeiro
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