As revoltas na Inglaterra, primeiro artigo da série
‘Cólera e Melancolia’, mostram como a direita
inglesa soube se apropriar da fúria dos distúrbios
para estruturar uma aparentemente
única alternativa eleitoral
Bruno Garcia*
Hoje os ingleses amanheceram celebrando o dia do armistício, feriado nacional que lembra os combatentes da primeira grande guerra. Desfiles militares e o tradicional minuto de silêncio abriram no país um raro parêntese de solenidade e paz num ano tão tumultuado. Como já sabemos, 2011 tem sido especialmente animado. Revoltas estudantis, como na Áustria e no Chile, movimentos de ocupação, como os Indignados na Espanha e o Ocupe Wall Street, além de insurreições populares violentas, como na Grécia, incendiaram o mundo. E o Reino Unido, vejam vocês, é o único país a abrigar todas essas formas de protesto. Foi, ainda, o primeiro a tentar compreender toda essa estranha combinação de acontecimentos – e, também, a premiá-los com o retorno triunfal dos conservadores.
Como de costume, a história começa com a febre de austeridade com que reagiu o governo britânico à crise. O desemprego entre jovens chegou a mais de 20%, enquanto os cortes de gasto do governo em segurança social se multiplicaram. O estopim desencadeador da série de protesto aconteceu em dezembro de 2010, diante da tentativa de aumento das tarifas das universidades. Num primeiro momento, conseguiram segurar a violência fiscal europeia, mas esta semana voltaram a marchar em Londres. A proposta, como todo o arsenal de austeridade, flutua entre parlamentares à espera de um lapso de atenção popular para ser aprovada.
Tem sido assim. Medidas impopulares, rechaçadas num primeiro momento pelo calor de protestos localizados, esperam sua aprovação discreta num momento oportuno. Talvez por isso, essa nova forma de protesto – composto por acampamentos e ocupações – tenha se articulado como manifestações permanentes. Verdade seja dita: assistimos à crescente deterioração da qualidade de vida entre jovens, imigrantes e a classe trabalhadora nos últimos anos.
Repressão a negros e imigrantes
A crise chegou ao seu limite no meio do ano. Sem dúvida, o grande evento que chamou a atenção do mundo foram os distúrbios, as rebeliões (riots em inglês) londrinas na primeira semana de agosto. Oficialmente o estopim foi a morte de Mark Duggtan, membro da comunidade negra de Tottenham, por policiais. A versão inicial falou em troca de tiros. Mais tarde se descobriu que apenas as armas dos oficiais dispararam.
O contexto já é conhecido: bairros e regiões compostas de grandes comunidades de imigrantes e negros, alvo principal de revistas constantes da polícia e principais vítimas das reformas de austeridade, reagindo a mais grave de uma série de humilhações por parte da polícia.
Demonização da classe trabalhadora
Sem querer desprezar os elementos mais óbvios, como o contexto de bairros e regiões compostas de grandes comunidades de imigrantes e negros, alvo principal de revistas constantes da polícia e principais vítimas das reformas de austeridade, há algo de novo, diferente e perturbador nisso tudo.
O argumento original vem de Owen Jones, autor do livro: Chavs: a demonização da classe trabalhadora, que focaliza a tendência cada vez mais crescente de seus compatriotas de transformar a classe trabalhadora em objeto de medo (criminalizando seus comportamentos sociais) e escárnio (ridicularizando seus hábitos de consumo e estilo de vida). Não por acaso, Jones se tornou uma espécie de contra voz, cada vez mais necessária nesse contexto.
Seu livro parece antecipar algumas das principais discussões após as rebeliões de agosto. Em primeiro lugar, porque trata especificamente da forma como a classe trabalhadora, e por tabela, imigrantes e minorias étnicas, vem sendo tratadas cada vez mais como inimigos internos. O mérito do autor é o de desassociar os argumentos da extrema direita inglesa do radical British National Party, e, sim, mencionar argumentos associados a essa tendência que circulam cada vez mais pelo senso comum.
Repulsa da população
Em segundo lugar, Jones foi um dos primeiros, ainda em meio aos distúrbios, a afirmar que o evento era uma tragédia para a classe trabalhadora. Que, seguindo uma tendência já comprovada pela eleição de David Cameron, a revolta seria fatalmente incorporada ao capital político da direita britânica. Não poderia estar mais certo.
A fúria dos protestos produziu na população repulsa tamanha que, na primeira sondagem feita durante os protestos, 9 em 10 pessoas defendiam o uso do canhão de água, a maioria desejava a participação do exército e 1/3 das pessoas defendiam o uso de munição letal. Quando Cameron radicalizou o discurso e autorizou a prisão de inúmeros manifestantes, ele sabia a audiência para qual se dirigia.
Por mais que a volta de tanta gente às ruas tenham colorido a apatia do consenso de tantos anos, criando a ilusão de que a finalmente alguma coisa estava acontecendo, a rebelião nas cidades inglesas parece sinalizar um tom de desesperança por trás da mobilização. Por um lado, poderíamos compreender a fúria dos revoltosos. Mas há demasiadas contradições que diferenciam esses movimentos dos anteriores.
Falamos de um constante crescimento nas desigualdades sociais, mas em vez de procurar uma redistribuição pela força, os manifestantes destruíram suas próprias comunidades e negócios locais. Em alguns casos, algumas pessoas queimaram a própria casa. Diferente das revoltas anteriores, o confronto com a polícia foi evitado ao máximo. Por mais que existisse um ressentimento com o estado e suas instituições, aparentemente há uma espécie de bizarra junção de raiva e melancolia.
É esse o quadro catastrófico dos protestos na Inglaterra, e que não parece muito diferente dos demais movimentos. Talvez a mencionada melancolia seja mera característica inglesa, mas não restam dúvidas de que os diagnósticos da crise são seguidos de silêncios, sob perplexa falta de solução. Em outras palavras, reafirmam de certa forma o paradoxo da insistência na mesma estrutura que acabara de falir o continente. E na ausência de uma articulação política dos revoltosos, na falta de uma esquerda capaz de mobilizar tamanha insatisfação, resta à direita estruturar o único caminho eleitoral capaz de oferecer alguma coisa próxima de uma alternativa.
FONTE: Revista de Historia / * Bruno Garcia é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional e idealizador do Observatório de protestos, levantes e movimentos de dissenso
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