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terça-feira, 14 de maio de 2013

Cientistas, engenheiros e artistas











Produções materiais e tecnológicas dos povos indígenas são fruto de uma complexa teia de saberes e significados

Para muitos povos indígenas amazônicos, no início dos tempos não existia o fogo. Foi preciso roubá-lo dos animais como a onça e o urubu-rei, que foram condenados a comer carne crua para sempre. Mas era preciso sempre manter uma brasa acesa, do contrário, corria-se o risco de perder o fogo. Para resolver esse problema, o homem aprendeu a preparar as varetas para fazer fogo, e ficou independente.
No mito de origem do fogo, as varetas igníferas, ou seja, que “carregam” o fogo, são ferramentas que representam a emergência do homem como ser transformador do mundo. Depois vieram outras: facas e machados de pedra, seguidos pela descoberta e a transformação do aço. O “roubo” do fogo, a nossa primeira fonte de energia,representa o poder simbólico do homem de transformar a natureza através da tecnologia.
As invenções tecnológicas da era atual levaram o homem à lua e diminuíram as distâncias entre as sociedades humanas através dos meios de transporte e da internet. Elas nos fizeram mais resistentes às doenças, mas deixaram o planeta vulnerável a mudanças climáticas devido ao uso incontrolado de recursos naturais e ao crescimento populacional. Dependemos da natureza para obtenção da água, do petróleo e de outros recursos usados na fabricação de produtos. No entanto, a especialização do homem, principalmente após a revolução industrial, distanciou-o da origem dos materiais usados nos objetos. Nas sociedades industriais, chegou-se a um nível de especialização no qual cada ser humano, na sua profissão, é responsável por uma etapa na fabricação de um produto, muitas vezes desconhecendo a origem das matérias-primas utilizadas e as diferentes fases necessárias para esta transformação.
Entre os povos indígenas e outras comunidades que vivem em áreas rurais no Brasil, a distância entre a matéria-prima e os produtos é pequena. Os conhecimentos tecnológicos necessários à fabricação de objetos são dominados por homens ou mulheres, de acordo com a sua idade e função social na comunidade. Assim, uma jovem indígena aprende com a mãe, a avó e as tias a plantar e a colher o algodão, cuidar das sementes, fiar e tecer redes para sua família. Ela é ao mesmo tempo cientista, engenheira e artista.
A tecnologia indígena compreende conhecimentos aplicados na transformação de recursos naturais em objetos ou produtos utilizados com inúmeras finalidades: da alimentação e uso doméstico até o transporte (por exemplo, fabricação de canoas), moradia, uso ritual (festivais e pajelanças) e, crescentemente, a comercialização. O conjunto de objetos produzidos pelos povos indígenas é chamado pela antropologia de “cultura material”. Os objetos podem ser classificados de acordo com as matérias-primas, as técnicas usadas em sua fabricação ou segundo o seu uso em diversas categorias: adornos ou enfeites, arte plumária, brinquedos infantis, caça, pesca, transporte, cerâmica, cestaria, instrumentos musicais, tecelagem, habitação e uso ritual.
O conhecimento vivencial dos povos indígenas distingue-se da ciência ocidental não indígena de várias maneiras. Para os indígenas, não existe separação entre religião e ciência. As dimensões espiritual, social, econômica e ecológica estão integradas na sua visão de mundo, e fazem parte do dia a dia de suas relações sociais e com a natureza. Não háseparação entre a produção de um objeto de uso diário e a produção artística. Um cocar de penas de arara confeccionado por um homem kayapóé ao mesmo tempo um adorno, um objeto ritual, uma obra de arte e um símbolo de identidade étnica e política.
Os povos indígenas brasileiros usam uma grande variedade de materiais encontrados na natureza para a produção de suas obras e objetos de uso rotineiro e ritual. Esses recursos naturais podem ser de origem mineral (pedras, barro para fabricação de cerâmica), vegetal (fibras, folhas, raízes, sementes, troncos) e animal (penas, pelos, unhas, dentes, escamas, ossos). Estão nos rios, nas florestas, nos campos, nas roças, nas capoeiras (roças antigas) e em outros ecossistemas.
Um mesmo objeto pode ter várias finalidades. Os homens kaiabi fabricam um tipo de cesto adornado com desenhos gráficos que é usado pelas mulheres para guardar algodão. Ele é tecido com a fibra do arumã, planta que possui seu “dono” ou espírito. Para colher o arumã, os homens utilizam o facão e cortam a planta acima do primeiro nó, para que rebrote. Em seguida, seguem-se diversas etapas de preparação da fibra. Os homens trançam as peneiras de acordo com a técnica de trançado marchetado, com desenhos gráficos em relevo, procedendo então à pintura do cesto com a resina da casca de um tipo de jequitibá. O mesmo cesto pode também ser usado pelo pajé para rezar um doente (uso ritual) e para a venda. Um objeto que parece “simples” aos olhos de um observador externo possui um conjunto de valores, técnicas e conhecimentos associados, como se em uma peneira fosse possível trançar várias dimensões ou “teias de significados” materializados pela tecnologia.
O conhecimento tecnológico é peculiar a cada povo indígena, e está de acordo com suas tradições culturais, inter-relações com a natureza, língua e história. No passado, muitos deles eram adquiridos na guerra e no contato com outros povos indígenas, e transmitidos de geração a geração por observação direta ou por via oral, através de mitos e histórias. O conhecimento de como produzir e dominar o fogo, aprendido com os ancestrais e “roubado da onça e do urubu-rei”, é aplicado anualmente na agricultura indígena, envolvendo o processo de escolha do local, abertura da roça, queima utilizando certos tipos de madeiras (como varetas de urucum), seguidos de plantio, colheita e preparo de alimentos.
Dessa forma, atecnologia indígena tece a natureza, a cultura e a sociedade. Um conjunto de fatores inter-relacionados determina tanto a perda da habilidade e do conhecimento para confeccionar certo item como a aquisição de uma nova técnica. Entre os principais fatores dessas transformações estão os intercâmbios étnicos, a influência da sociedade não indígena, o comércio, a substituição por produtos industrializados, a transferência de territórios ancestrais para outras áreas e a perda de acesso a recursos naturais.
Atualmente, vários povos têm desenvolvido projetos para o resgate cultural de suas manifestações artísticas e conhecimentos tecnológicos. Afinal de contas, manter esses conhecimentos em tempos de profundas transformações socioambientais pode ser mais difícil do que roubar o fogo da onça: apesar de termos as varetas para produzi-lo, precisamos de esforço coletivo para manter as brasas acesas.
Saberes indígenas no mundo industrial
Muitos conhecimentos tecnológicos da atualidade têm suas raízes nas civilizações pré-colombianas, que praticavam a engenharia de navegação, a arquitetura na construção de casas, a tecnologia da produção de alimentos, e as técnicas de manufatura de cestos, cerâmica e tecidos. Aproveitamos a mandioca para farinha e bolos e produzimos redes de dormir comercializadas em todo o Brasil e no exterior, como aprendemos com os povos indígenas desde o século XVI.
Vários povos indígenas brasileiros têm desenvolvido projetos em colaboração com entidades nacionais e internacionais para a divulgação, a revitalização e a inovação de seus conhecimentos tradicionais. Existe um movimento crescente no sentido do reconhecimento legal das obras indígenas como obras de arte, com o devido tratamento legal e o pagamento de direitos autorais.
Em 1998, desenhos preparados por várias artistas kadiwéus foram utilizados na reforma de prédios em um bairro da antiga Berlim Oriental. Os direitos autorais foram todos transferidos para a Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu, através da UFRJ. Este registro é pioneiro no Brasil, e já começou a produzir mudanças na abordagem entre profissionais da cultura e povos indígenas.

Saiba mais - Bibliografia
PORTOCARRERO, José Afonso B. Tecnologia indígena em Mato Grosso: Habitação. Cuiabá: Sebrae/Entrelinhas, 2010.
RIBEIRO, B. G. (Org.). Suma Etnológica Brasileira – Vol. II:Tecnologia Indígena; Vol. III:Arte Índia. Petrópolis: FINEP/Vozes, 1986.
VIDAL, L. (Org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/USP, 1992.

FONTE: REVISTA DE HISTÓRIA / Simone Athayde é pesquisadora do Programa de Conservação e Desenvolvimento Tropical (TCD) do Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade da Flórida e do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), e autora da tese “Weaving Power: Indigenous Knowledge Systems and Territorial Control accross Three Kaiabi Groups in the Brazilian Amazon”(Universidade da Flórida, 2010).

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