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sábado, 31 de março de 2012

A ditadura civil-militar


Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular. 


É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira. 

As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350 mil pessoas. Depois houve a Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Estiveram ali, no mínimo, a mesma quantidade de pessoas que em São Paulo. Sucederam-se marchas nas capitais dos estados e em cidades menores. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso. Mesmo descontada a tendência humana a aderir à Ordem, trata-se de um impressionante movimento de massas. 


Nas marchas desaguaram sentimentos disseminados, entre os quais, e principalmente, o medo, um grande medo. 

De que as gentes que marcharam tinham medo? 

Tinham medo das anunciadas reformas, que prometiam acabar com o latifúndio e os capitais estrangeiros, conceder o voto aos analfabetos e aos soldados, proteger os assalariados e os inquilinos, mudar os padrões de ensino e aprendizado, expropriar o sistema bancário, estimular a cultura nacional. Se aplicadas, as reformas revolucionariam o país. Por isto entusiasmavam tanto. Mas também metiam medo. Iriam abalar tradições, questionar hierarquias de saber e de poder. E se o país mergulhasse no caos, na negação da religião? Viria o comunismo? O Brasil viraria uma grande Cuba? O espectro do comunismo. Para muitos, a palavra era associada à miséria, à destruição da família e dos valores éticos. 

É preciso recuperar a atmosfera da época, os tempos da Guerra Fria. De um lado, os EUA e o chamado mundo livre, ocidental e cristão. De outro, a União Soviética e o mundo socialista. Não havia espaço para meios-termos. A luta do Bem contra o Mal. Para muitos, Jango era o Mal; a ditadura, se fosse o caso, um Bem. 

No Brasil, estiveram com as Marchas a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas. A favor das reformas, uma parte ponderável de sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos, as esquerdas. Difícil dizer quem tinha a maioria. Mas é impossível não ver as multidões — civis — que apoiaram a instauração da ditadura. 

A frente que apoiou o golpe era heterogênea. Muitos que dela tomaram parte queriam apenas uma intervenção rápida, brutal, mas rápida. Lideranças civis como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, Ulysses Guimarães, Juscelino Kubitschek, entre tantos outros, aceitavam que os militares fizessem o trabalho sujo de prender e cassar. Logo depois se retomaria o jogo politico, excluídas as forças de esquerda radicais. 

Não foi isso que aconteceu. Para surpresa de muitos, os milicos vieram para ficar. E ficaram longo tempo. Assumiram um protagonismo inesperado. Houve cinco generais-presidentes. Ditadores. Eleitos indiretamente por congressos ameaçados, mas participativos. Os três poderes republicanos eram o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os militares mandavam e desmandavam. Ocupavam postos no aparelho de segurança, nas empresas estatais e privadas. Choviam as verbas. Os soldos em alta e toda a sorte de mordomias e créditos. Nunca fora tão fácil “sacrificar-se pela Pátria”. 

E os civis? O que fizeram? Apenas se encolheram? Reprimidos? 

A resposta é positiva para os que se opuseram. Também aqui houve diferenças. Mas todos os oposicionistas — moderados ou radicais — sofreram o peso da repressão. 

Entretanto, expressivos segmentos apoiaram a ditadura. Houve, é claro, ziguezagues, metamorfoses, ambivalências. Gente que apoiou do início ao fim. Outros aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Houve os que vaiaram ou aplaudiram, segundo as circunstâncias. A favor e contra. Sem falar nos que não eram contra nem a favor — muito pelo contrário. 

Na história da ditadura, como sempre, a coisa não foi linear, sucedendo-se conjunturas mais e menos favoráveis. Houve um momento de apoio forte — entre 1969 e 1974. Paradoxalmente, os chamados anos de chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos. O Brasil festejou então a conquista do tricampeonato mundial, em 1970, e os 150 anos de Independência. Quem se importava que as comemorações fossem regidas pela ditadura? É elucidativa a trajetória da Aliança Renovadora Nacional — a Arena, partido criado em 1965 para apoiar o regime. As lideranças civis aí presentes atestam a articulação dos civis no apoio à ditadura. Era “o maior partido do Ocidente”, um grande partido. Enquanto existiu, ganhou quase todas as eleições. 

Também seria interessante pesquisar as grandes empresas estatais e privadas, os ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de comunicação, a diplomacia, os tribunais. Estiveram ali, colaborando, eminentes personalidades, homens de Bem, alguns seriam mesmo tentados a dizer que estavam acima do Bem e do Mal. 

Sem falar no mais triste: enquanto a tortura comia solta nas cadeias, como produto de uma política de Estado, o general Médici era ovacionado nos estádios. 

Na segunda metade dos anos 1970, cresceu o movimento pela restauração do regime democrático. Em 1979, os Atos Institucionais foram, afinal, revogados. Deu-se início a um processo de transição democrática, que durou até 1988, quando uma nova Constituição foi aprovada por representantes eleitos. Entre 1979 e 1988, ainda não havia uma democracia constituída, mas já não existia uma ditadura. 

Entretanto, a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar levou, e leva até hoje, a marcar o ano de 1985 como o do fim da ditadura, porque ali se encerrou o mandato do último general-presidente. A ironia é que ele foi sucedido por um politico — José Sarney — que desde o início apoiou o regime, tornando-se ao longo do tempo um de seus principais dirigentes…civis. 

Estender a ditadura até 1985 não seria uma incongruência? O adjetivo “militar” o requer. 

Ora, desde 1979 o estado de exceção, que existe enquanto os governantes podem editar ou revogar as leis pelo exercício arbitrário de sua vontade, estava encerrado. E não foi preciso esperar 1985 para que não mais existissem presos políticos. Por outro lado, o Poder Judiciário recuperara a autonomia. Desde o início dos anos 1980, passou a haver pluralismo politico-partidário e sindical. Liberdade de expressão e de imprensa. Grandes movimentos puderam ocorrer livremente, como a Campanha das Diretas Já, mobilizando milhões de pessoas entre 1983-1984. Como sustentar que tudo isto acontecia no contexto de uma ditadura? Um equívoco? 

Não, não se trata de esclarecer um equívoco. Mas de desvendar uma interessada memória e suas bases de sustentação. 

São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura. 

Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória. No exercício desta absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura. 

Enquanto tudo isso prevalecer, a História será uma simples refém da memória, e serão escassas as possibilidades de compreensão das complexas relações entre sociedade e ditadura. 


FONTE: PROSA ONLINE / DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da UFF

sexta-feira, 30 de março de 2012

Ditadura Militar no Brasil, entre 1964 e 1985, com Boris Fausto

1ª Parte do vídeo sobre a Ditadura Militar no Brasil, entre 1964 e 1985, com Boris Fausto.



 Boris Fausto - ditadura 2/3


 borisfausto - ditadura 3/3

   


 Ao contrário do que aconteceu em países vizinhos, até hoje o Brasil não julgou os crimes cometidos depois do golpe militar de 1964. O governo brasileiro também não conseguiu informar aos familiares o paradeiro dos restos mortais de dezenas de desaparecidos durante o regime. Por isso, o país foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Caminhos da Reportagem mostra o que o Brasil vem fazendo para tentar passar a limpo os crimes de Estado cometidos nos anos de chumbo e os desafios que ainda tem pela frente. http://tvbrasil.org.br/caminhosdareportagem/

O pecado original da República

Como a exclusão do povo marcou a vida
 política do país até os dias de hoje
José Murilo de Carvalho


Ano de 1889: cem anos da Revolução Francesa. A corrente jacobina dos republicanos brasileiros julgava ser essa a ocasião ideal para a proclamação de nossa República, que deveria, segundo ela, ser feita revolucionariamente pelo povo lutando nas ruas e nas barricadas. O principal porta-voz dessa corrente, Silva Jardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde d’Eu, o marido da princesa Isabel. Sendo o conde um nobre francês, seu eventual fuzilamento daria à revolução brasileira um sabor especial,  pois lembraria a morte na guilhotina do rei Luís XVI.

Um ponto central da propaganda republicana era a idéia de autogoverno, do povo governando a si mesmo, do país se autodirigindo, sem necessidade de uma família real de origem européia e de um imperador hereditário. Das três correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribuía maior protagonismo ao povo.

A corrente mais forte era a liberal-federalista, de derivação anglo-americana. O liberalismo vinha do lado anglo, da Inglaterra; o federalismo, do lado norte-americano. O liberalismo predominou no Manifesto Republicano de 1870, mais bem representado por Saldanha Marinho, e o federalismo, no projeto de constituição dos republicanos paulistas de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Por sua ascendência liberal, oriunda dos liberais do Império, ela admitia participação popular, embora sem lhe atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos. Pelo lado federalista, no entanto, não havia muita simpatia pelo povo. Interessava-lhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo federalismo.

A terceira corrente era a positivista, também de filiação francesa, não da Revolução, mas do filósofo Augusto Comte. Os positivistas eram os únicos que não previam papel ativo para o povo na República. Os protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os próprios positivistas, no campo material, os empresários. Os positivistas não admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores, era trabalhar, o dever dos empresários e o do Estado era cuidar do bem-estar do povo.

Prometida pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia política, a incorporação do povo, foi posta em prática pelo novo regime. A primeira década republicana foi marcada pela presença de militares no governo, por agitações, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presença durante o governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participação jacobina atingiu o ponto máximo na tentativa de assassinato do presidente Prudente de Morais, em 1897. A partir do próximo presidente, Campos Sales, a corrente liberal-federalista, sob a hegemonia de São Paulo, passou a predominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal.

Até 1930, pode-se dividir o povo da República em três partes. Imaginemos um grande círculo contendo em si círculos menores. O grande círculo representa o total da população do país; os círculos menores, as parcelas dessa população dividida de acordo com sua participação política. Movimentando-nos do centro para a periferia, chamemos o círculo menor de povo eleitoral, isto é, aquela parcela da população que votava; o círculo seguinte, um pouco maior, representa o povo político, isto é, a parcela da população que tinha o direito de voto de acordo com a Constituição de 1891; o círculo seguinte é o do povo excluído formalmente da participação via direito do voto.

De acordo com os dados do censo de 1920, teremos uma população total, representada pelo círculo maior, de 30,6 milhões. Este é o povo do censo que, pelo menos em tese, possuía direitos civis. Mas quantos desses cidadãos civis eram também cidadãos políticos, quantos pertenciam ao corpo político da nação? Para calcular esse número, temos primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. O analfabetismo, na época, atingia 75,5% da população. Feito o cálculo, restam 7,5 milhões. Depois, é preciso descontar as mulheres. Embora a lei não lhes negasse explicitamente o direito do voto, pela tradição não votavam. Ficamos com 4,5 milhões. Os estrangeiros também não tinham o direito do voto. Nosso número cai para 3,9 milhões. Finalmente, os homens menores de 21 anos também não votavam. Ficamos reduzidos a míseros 2,4 milhões de brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema político por meio do voto. Ficam fora do sistema, excluídos, 28,2 milhões, 92% da população.

Se eram poucos os que podiam votar, menos ainda eram os que de fato votavam. Nas eleições presidenciais de 1910, uma das poucas em que houve competição, disputando Rui Barbosa contra o marechal Hermes da Fonseca, a abstenção foi de 40%. Os votantes representaram apenas 2,7% da população. No Rio de Janeiro, capital da República, onde 20% da população estava apta a votar, compareceu às urnas menos de 1%. Votar na capital era até mesmo perigoso devido à ação dos capangas a serviço dos candidatos. Quem tinha juízo ficava em casa. Como disse Lima Barreto de sua República dos Bruzundangas: “[Os políticos] tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador – o voto”. A eliminação do voto completava-se com a fraude. Ninguém podia ter certeza de que seu voto seria contado a favor do candidato certo.

Significa isso que o povo da Primeira República não passava da carneirada dos currais eleitorais e da massa apática dos excluídos?  Seguramente que não. Por fora do sistema legal de representação havia ação política, muitas vezes violenta. Entre os poucos que votavam, os que escolhiam não votar e os muitos que não podiam votar, havia o que chamo de povo da rua, isto é, a parcela da população que agia politicamente, mas à margem do sistema político, e às vezes contra ele. É difícil calcular o tamanho desse povo. Podemos apenas surpreendê-lo em suas manifestações. E podemos também dizer que ele existia tanto nas cidades como no campo.

Nas cidades, sobretudo nas maiores, a tradição de protesto vinha de longe e manifestava-se o mais das vezes nos quebra-quebras. Ela se intensificou a partir da proclamação da República, atingindo o ponto máximo no protesto contra a vacinação obrigatória em 1904. A novidade republicana ficou por conta do movimento operário em fase de organização. Foram inúmeras as greves que atingiram a capital da República e São Paulo, além de outras capitais. Seu auge verificou-se durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos que a seguiram.  Calculou-se que 236 greves foram feitas na capital e no estado de São Paulo entre 1917 e 1920, envolvendo cerca de 300 mil operários. Em torno de 100 mil operários participaram da greve geral de 1917 no Rio de Janeiro. Outra novidade republicana foi a participação política dos militares, jovens oficiais e praças. A mais conhecida e mais dramática dessas manifestações foi a revolta dos marinheiros contra o uso da chibata, em 1910, em que se destacou o marinheiro João Cândido.

O efeito político das manifestações urbanas foi limitado porque elas se davam fora dos mecanismos formais de representação. O próprio movimento operário, na medida em que era orientado pelo anarcossindicalismo, sobretudo em São Paulo, fugia da participação eleitoral e nunca organizou um partido político duradouro até que fosse fundado o Partido Comunista, em 1922.  

No mundo rural, foi igualmente intensa a participação do povo. Aí também havia uma longa tradição que foi intensificada pelas mudanças políticas introduzidas pelo novo regime. As figuras centrais das agitações  rurais eram beatos e cangaceiros. O mais dramático de todos esses movimentos, pelo número de mortos, foi sem dúvida o de Antônio Conselheiro nos sertões da Bahia. A seu modo, os beatos do Conselheiro agiram politicamente, ao recusar o pagamento de impostos, ao rejeitar mudanças nas relações entre Igreja e Estado. Lutando contra a “lei do cão” do novo regime, os rudes sertanejos humilharam o Exército, que contra eles lançou quatro expedições, e deram um exemplo único em nossa história de fidelidade incondicional às crenças adotadas.

Movimento semelhante ao de Canudos foi o do Contestado, localizado em terras disputadas entre Paraná e Santa Catarina. O monge José Maria dera-lhe início ainda no Império. Proclamada a República, seu sucessor reagiu contra o que chamava de “lei da perversão”, o equivalente da “lei do cão” do Conselheiro. A partir de 1911, outro sucessor de João Maria, José Maria, lançou um manifesto monarquista e nomeou imperador um fazendeiro analfabeto. Criou uma sociedade assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e sem comércio. Canudos e Contestado foram combatidos e destruídos com violência pelo Exército, que não hesitou em usar canhões contra sertanejos pobremente armados. 

No Ceará, padre Cícero organizou uma comunidade sertaneja que, à época de sua morte, em 1934, contava 40 mil pessoas. Padre Cícero não contestava o sistema, como o Conselheiro e José Maria. A seu modo, agindo mais como coronel político, fundou uma República paternalista muito próxima da população. Manipulando valores tradicionais e colocando-os a serviço da modernidade, reduziu a distância entre o legal e o real, aproximou da população o poder. Alguns de seus seguidores, como os beatos José Lourenço, Severino e Senhorinho, fundaram comunidades radicais ao estilo do Contestado. Padre Cícero entendeu-se com os poderes da República e foi tolerado. Os três beatos foram massacrados juntamente com seus seguidores.

Os cangaceiros, frutos do mesmo meio social que gerou os beatos, mantinham, como padre Cícero, contatos estreitos com os poderes da República. Mas fugiam ao controle dos coronéis e dos governos estaduais. Foram também combatidos sem trégua e destruídos. Beatos e cangaceiros representavam formas de organização e de reação construídas à margem do sistema político. Canudos, Contestado, e mesmo o Juazeiro do padre Cícero, eram modelos alternativos de República. Apesar de inviáveis por serem produtos do isolamento geográfico e da imensa distância cultural entre a população e o mundo oficial, essas Repúblicas foram destruídas a ferro e fogo e só deixaram traços na memória popular. A exceção foi Canudos, que foi imortalizado por Euclides da Cunha, não por acaso um intelectual estranho no ninho das elites.

O grosso do povo excluído era mantido sob controle pela própria organização social do mundo rural, baseada na grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de cooptação e manipulação. O povo da rua era quase sempre tratado à bala, nas cidades ou no campo.

Mas a República usou também métodos menos violentos para lidar com seus excluídos. Produziu missionários do progresso que se puseram a catequizar os cidadãos incultos e tratar os doentes. Foram missionários do progresso Pereira Passos, reformador do Rio de Janeiro, Osvaldo Cruz, saneador da cidade, Artur Neiva e Belisário Pena, saneadores dos sertões.  O maior de todos eles, no entanto, foi o general Rondon, positivista ortodoxo, que dedicou boa parte da vida à proteção dos indígenas. Muito superiores pelos métodos aos que destruíam pela força os movimentos populares, esses missionários não estiveram imunes a uma visão tecnocrática e autoritária.  O povo para eles era massa inerte e analfabeta a ser tratada, corrigida e civilizada. De certo modo, eram messias leigos, com a diferença de que não tinham o apoio popular dos messias do sertão.

A Primeira República, em seus 41 anos de existência, não fez jus às promessas da propaganda de promover a ampliação da participação política, o autogoverno do povo. Não unificou os três povos, não os incorporou. Não transformou em cidadãos o jeca doente de Monteiro Lobato e dos higienistas, o áspero sertanejo de Euclides, os beatos de Canudos e do Contestado, o bandido social do cangaço, o anarquista do movimento operário.

A ausência de povo, eis o pecado original da República. Esse pecado deixou marcas profundas na vida política do país. Quando, em meio à crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrença nos partidos, no Congresso, nos políticos, de que se trata se não da incapacidade que demonstra até hoje a República de produzir um governo representativo de seus cidadãos? 

FONTE:Revista de Historia

Primavera Árabe


Especial TV Cultura: Primavera Árabe

Um verdadeiro retrato do mundo árabe: a criação, as revoltas, a religião e a sociedade, é o mote do especial Primavera Árabe, com apresentação da jornalista Maria Cristina Poli.



Modernismo com uma perspectiva filosófica

Para o filósofo Eduardo Jardim, o local é inspirador: o Salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, no Centro do Rio de Janeiro. Ao lado de um painel do pintor que dá nome à sala, no interior desse edifício representativo do Modernismo, construído entre 1937 e 1945, o professor da PUC-Rio conta por que decidiu estudar esse movimento cultural.


“Fiz Filosofia, mas tinha uma curiosidade grande pelas questões relacionadas à história da cultura brasileira. Então, no meu mestrado resolvi trabalhar o Modernismo com uma perspectiva filosófica”, explica Jardim. Desse trabalho nasceu seu primeiro livro, A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, de 1978, que será republicado este ano.

Nesta entrevista, o filósofo conta que descobriu aspectos “pouco explorados” ao organizar a cronologia do movimento e as direções que ele tomou. Fala ainda da importância de ter estudado Mário de Andrade, o autor que, em sua opinião, melhor formulou a doutrina moderna e que sentia uma profunda angústia por ver o movimento afastado da função social da arte.

Jardim defende que o Modernismo faz parte de “outra época”, mas sua importância para a História brasileira continua sendo insuperável: “Existe a permanência das ideias modernistas. Nada de tão forte veio substituí-lo”.

REVISTA DE HISTÓRIA Para você, que é filósofo, como começou o diálogo com a História?
EDUARDO JARDIM Primeiro preciso dizer como é fascinante dar esta entrevista neste lugar, o Palácio Capanema, no Salão Portinari, com um belíssimo painel do pintor que descreve os ciclos econômicos do Brasil, junto ao jardim de Burle Marx! É muito inspirador...  Pelo fato de eu ter vindo de uma formação em Filosofia, descobri coisas que tinham sido pouco exploradas pela história do Modernismo. Por exemplo, avaliei a presença das ideias de Graça Aranha na formulação da doutrina modernista e organizei, de modo novo, a cronologia do movimento e as direções que ele tomou nos anos 20. Esta entrada pela Filosofia me ajudou a ter uma ótica diferente da que era normalmente usada e a propor a discussão das bases doutrinárias do movimento.

RH O que é o Modernismo para você?
EJ É certo que há o Modernismo artístico e literário, que tem na Semana de 22 uma referência inaugural. Porém, o Modernismo é uma corrente de ideias bem mais ampla, da qual o movimento de 1922 foi um momento. Não devemos considerar apenas a arte e a literatura, mas também esta corrente de ideias na história intelectual brasileira, que tem mais ou menos 100 anos, que se iniciou no final do século XIX, com a geração de Sílvio Romero e de Euclides da Cunha, e que terminou nos anos 70 ou 80 do século XX, com o tropicalismo e outras manifestações. Mas, para me referir estritamente ao Modernismo literário e artístico, não há uma unidade doutrinária, já que, ao longo do tempo, as teses modernistas se modificaram. Houve também diversas orientações dentro do movimento. Houve um primeiro momento na história do Modernismo, o período que vai de 1917, ano da exposição da Anita Malfatti em São Paulo, até 1924, no qual existiu alguma unidade de pensamento. Todos imaginavam que o processo de modernização ou de atualização das linguagens artísticas e culturais no Brasil seria feito pela incorporação dos recursos modernizadores, que seriam buscados nas vanguardas europeias. Para eles, nesse primeiro momento, o processo modernizador dependia da incorporação de tudo que tivesse um aspecto moderno.

RH Foi um momento de ruptura?
EJ Os modernistas entendiam assim e queriam fazer oposição aos chamados “passadistas”. Até 1924 houve uma preocupação com a renovação estética. Modernizar significava incorporar o Brasil ao “concerto das nações cultas”, isto é, incorporar a parte ao todo universal, de forma imediata. Em 1924 houve um redirecionamento do Modernismo, com a publicação do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Nesse momento, passou-se a exigir que o processo de modernização não fosse mais feito de forma imediata, pela simples adoção de linguagens artísticas modernas, mas que ele dependia da afirmação dos traços nacionais da cultura brasileira. Seria por meio da afirmação da parte nacional que se daria a incorporação ao todo. A maneira de pensar o elemento nacional, neste segundo tempo, variou muito nos diversos grupos. A maneira analítica de pensar de Mário de Andrade contrasta com a de Oswald de Andrade no Manifesto da PoesiaPau-Brasil e, mais tarde, na Antropofagia. Oswald de Andrade rejeitou a análise e defendeu uma forma intuitiva de apreender o nacional. Também o grupo organizado em torno de Plínio Salgado, os verde-amarelos, pensavam diferente, e situavam-se mais próximos de Oswald de Andrade, ao menos do ponto de vista conceitual.

RH A partir disso, pode-se falar em modernismos, no plural e com m minúsculo?
EJ Pode-se falar em modernismos, sim, se pensarmos nas várias tendências do movimento. Mas há Modernismo com M maiúsculo, e com isso me refiro a uma base conceitual comum a muitas orientações. Ela determina o modo de ser da literatura, das artes, das Ciências Sociais e da História. É um modo de compreender o país em uma mesma chave, adotada por autores e artistas tão diversos como Euclides da Cunha, Sérgio Buarque, Hélio Oiticica, Gilberto Gil...

RH E o que dá uma coerência a esse movimento? O que une Euclides da Cunha e Gilberto Gil?
EJ A base conceitual dessa corrente é a crença na presença de duas linhas que se cruzam. A primeira tem a ver com o movimento de incorporação do Brasil ao todo, à ordem universal. Este é um desafio propriamente modernista, que não havia, por exemplo, no Romantismo. As questões dos modernistas são: como garantir a entrada do Brasil no concerto das nações cultas? Como nossa formação favorece ou prejudica essa entrada? Em que medida o Brasil dos sertões, descrito por Euclides, por exemplo, precisa ser liquidado para dar acesso ao mundo moderno? Será que as raízes do Brasil, ibéricas e rurais, dificultam o ingresso na modernidade? Estas questões estiveram na ordem do dia até os anos 70, até o Cinema Novo, a geração do tropicalismo...

RH E a segunda linha?
É uma linha vertical, que diz respeito à dimensão temporal, e que cruza com a primeira. Ela tem a ver com o curso da História e com os temas do desenvolvimento e do progresso; trata-se de uma concepção progressista de História. Na medida em que a incorporação horizontal acontece, significa que caminhamos temporalmente na direção de um Estado moderno situado no futuro. O cruzamento das duas linhas foi descrito de várias maneiras, mas a base conceitual é a mesma. Ela se quebra somente no final dos anos 70.

RH Por que ela se quebra?
EJ Toda discussão modernista supõe referências muito determinadas. Ela depende da crença na existência de um “dentro” e de um “fora”, da parte e do todo, de uma ordem mundial em que há um centro e uma periferia. A partir de 1980, pensar deste modo não funciona mais. Quem fala hoje em um “fora” e em um “dentro”? Não há mais a possibilidade de se situarem lugares tão diferenciados. Não existe mais centro e periferia. Portanto, não existe mais a possibilidade de se descrever o processo modernizador como um deslocamento da parte em direção ao todo. A própria noção de espaço atualmente é muito diferente daquela do século passado. Outro problema tem a ver com a concepção futurista de tempo, que valoriza o progresso. A ideia de que a humanidade caminha para melhor não é mais tão óbvia. Já não temos a confiança no futuro como tinham os autores modernistas.

RH Então o movimento ficou no passado?
EJ Nos anos 70 e 80, começamos a sentir a perda dessas referências doutrinárias. Essa perda se acentuou nas décadas seguintes. Hoje, pode-se afirmar que nossa discussão sobre o Modernismo é feita de fora dele, não mais de dentro. Vivemos outra época.

RH E o que veio para ocupar o lugar do Modernismo?
EJ Muitos ideais modernistas sobreviveram sem uma base real. Isso ocorreu porque nenhum outro movimento tão importante ocupou o seu lugar. Não sei se é o caso de se lamentar ou louvar esta situação de perda de referências. O fato é que, nos anos 60 e 70, a relação com o Modernismo era muito viva. Joaquim Pedro de Andrade releu Macunaíma no cinema; Zé Celso retomou a obra de Oswald de Andrade. Hoje, certamente há uma sobrevivência de temas modernistas, mas eles não representam uma força viva.
RH Os modernistas ainda são um filtro para olharmos o passado?
EJ A interpretação modernista do Brasil é a mais importante na nossa história intelectual. Hoje, já fora do Modernismo, temos que compreender suas bases e delimitar com clareza seus limites. Caminharemos com dificuldade na avaliação da nossa cultura se não reconhecermos a potência das ideias modernistas e o significado do seu esgotamento.

RH Muitos artistas e intelectuais modernos são próximos do Estado. Como você vê a relação dessas pessoas com o Estado no Brasil?
EJ Não existiu só uma maneira de os intelectuais se relacionarem com o Estado no período modernista. Falar de cooptação dos intelectuais modernistas pelo Estado Novo é simplificar demais o problema. Para o Estado Novo, no ministério Capanema, o problema da educação era muito mais importante que o da cultura. E no caso da educação, era mais importante o problema da universidade do que o do ensino básico, já que a preocupação era com a formação das elites. Na cultura, nem todas as áreas de atuação dos modernistas interessaram ao ministério Capanema. Por exemplo, muitas coisas pensadas por Mário de Andrade, que tinha uma visão democrática da expansão cultural, não serviam para o autoritarismo do Estado Novo. Outras manifestações artísticas, como a arquitetura, foram prestigiadas nessa época. Os arquitetos modernistas são responsáveis por grandes obras oficiais. Os grandes monumentos da arquitetura moderna foram este prédio do ministério em que estamos, o conjunto da Pampulha e Brasília. Mas essa discussão sobre arte e política é tão complexa que merecia outra entrevista.

RH Então essa presença do Estado no movimento é mais forte na arquitetura?
EJ Duas coisas interessavam ao Estado. A valorização e a preservação do patrimônio, que continha os traços da nacionalidade, e a edificação de monumentos arquitetônicos. Recuperar o passado do país, no sentido de afirmar uma identidade, era importante. A criação do Serviço do Patrimônio ia nessa direção. Seu propósito era dar uma fisionomia própria à história brasileira. A arquitetura, por outro lado, tinha uma visão projetiva, apontava para o futuro. Mas ela devia abrigar os traços arquitetônicos considerados nacionais, e estes estavam depositados no patrimônio da nação, nas obras do período colonial. Esta complexidade caracterizou muitas obras modernistas, não apenas a arquitetura.

RH Os modernistas valorizavam a arquitetura colonial em detrimento de outros estilos que também fizeram parte da História do Brasil?
EJ Vou começar por uma referência ao Patrimônio. O projeto do Patrimônio é de Mário de Andrade, de 1936, e a formulação final é feita pelo ministério. Além do que já disse sobre a valorização da arquitetura colonial como forma propriamente nacional, é preciso lembrar as razões estéticas apresentadas por Mário de Andrade. A arte colonial é considerada como dotada de limpeza e de economia formal. Para o modernista Mário de Andrade, havia muito de moderno na arte colonial, pois ele considerava a arte moderna com idênticos traços. Todas as outras manifestações da arquitetura, que apresentavam elementos mais decorativos, foram consideradas “formalistas”, individualistas, antimodernas e não nacionais.

RH Já que você falou do Mário de Andrade, qual é a importância dele para o movimento?
EJ Mário de Andrade é o autor que melhor formulou, do ponto de vista conceitual, a doutrina modernista. Isto aconteceu nas várias fases do Modernismo. Ele definiu a versão imediatista do primeiro tempo em textos como A Escrava que não é Isaura. Em seguida, na fase nacionalista, fez a proposta mais articulada da nova direção. Naquele momento, tratou de pensar a identidade nacional a partir da cultura popular e folclórica. A preocupação central de Mário de Andrade foi sempre com a dimensão social da arte.  A partir de determinado momento da sua vida – e isso coincidiu com sua vinda para o Rio de Janeiro, depois de sair da direção do Departamento de Cultura de São Paulo, afastado pelo Estado Novo –, ele passou a ter uma visão muito desencantada de seus próprios projetos. Isto se refletiu em uma avaliação profundamente crítica do movimento modernista em sentido geral. Isto fica muito claro na conferência comemorativa dos 20 anos da Semana de 1922 feita no Itamaraty.

RH Que críticas Mário de Andrade faz?
EJ Ele nota na arte moderna a presença de duas tendências: o individualismo e o formalismo. Elas estão articuladas, e não se sabe direito qual apareceu primeiro. Certamente dá-se na modernidade o aparecimento de uma figura nova, o artista moderno, que acredita que a arte é a expressão da sua individualidade. Se a arte é definida modernamente nesta chave individualista, corre-se o risco de perder sua dimensão social. Para Mário de Andrade, a função da arte era religiosa, comunitária. Como resultado do individualismo moderno surgiu o formalismo. Isto significou que as intervenções formais do artista passaram a ser resultado do seu capricho criativo. Em reação a esta situação, Mário de Andrade propôs, a certa altura, que houvesse uma conversão do artista a artesão, que o artista deveria se submeter às regras da arte-fazer. Alguns críticos notaram neste ponto uma tendência conservadora. De qualquer forma, esta visão esteve presente em várias outras propostas “construtivas” na arte brasileira, inclusive na poesia de João Cabral. Seria então o caso de perguntar sobre a importância de Mário de Andrade na definição destas propostas surgidas alguns anos mais tarde.

RH Ele está criticando uma geração?
EJ No final da vida, ele se distanciou muito da sua própria geração. Quando fez a palestra no Itamaraty, ficou tão emocionado que acabou em uma noitada que só terminou na manhã seguinte. Imagino que ele tenha tomado um porre na Lapa carioca. No entanto, um dos amigos da sua geração, Carlos Drummond, que estava presente, deu uma declaração mais tarde dizendo que “soube depois que Mário de Andrade tinha ficado muito emocionado com tudo aquilo”. Isto ilustra o descompasso entre Mário de Andrade e os velhos amigos, naqueles anos da guerra. Foi também nesse momento, final dos anos 30 e início dos 40, que ele se aproximou de uma geração bem mais jovem, de jovens esquerdistas, entre eles Carlos Lacerda e Moacir Werneck de Castro, e, em São Paulo, do grupo da revista Clima, de Paulo Emílio e Antonio Candido. Eles estão sempre provocando o amigo mais velho a assumir compromissos políticos mais radicais. Na verdade, Mário de Andrade oscilou muito quanto a este ponto. Mas nunca cedeu inteiramente, em sua obra, ao apelo da política, apesar de suas declarações no final da vida. Há uma carta dirigida a Helio Pellegrino em que ele explicou, com muita clareza, sua posição, que distingue o sentido social da arte da arte de combate. 

RH De onde surgiu essa apreciação mais crítica por parte de Mário de Andrade?
EJ Tudo começou em 1935, com o convite para ser diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O governador do estado era Armando Sales de Oliveira. Mário de Andrade viu no convite a possibilidade de realização do projeto modernista. Armando Sales de Oliveira era candidato à Presidência da República na eleição de 1939, e, caso ganhasse, Mário de Andrade certamente teria uma posição nacional de destaque. Mas no final de 1937, com o Estado Novo, o grupo de Mário de Andrade foi afastado. Getulio colocou um interventor em São Paulo, o que levou a seu afastamento da chefia do Departamento. Mário de Andrade sofreu enorme abalo com isso. Ficou tão decepcionado que decidiu sair de São Paulo e ir para o Rio de Janeiro, onde foi professor da Universidade do Distrito Federal e, mais tarde, funcionário do Ministério da Educação. Foi neste contexto que Mário de Andrade fez uma revisão de sua vida e empreendeu uma crítica ao movimento de que tinha sido considerado o “papa”. Também a guerra afetou muito o estado de espírito do poeta. A tomada de Paris pelos nazistas foi um golpe duro. Isto tudo o levou a radicalizar suas posições, de um ponto de vista político.

RH Como a vida do Mário de Andrade no Rio de Janeiro influenciou sua visão crítica? 
EJ Ele foi morar na Rua do Catete, em um prédio que existe até hoje. Há cartas que mencionam seu estranhamento com a cidade. Fala do calor da cidade, e, num trecho de uma crônica deliciosa, do contato desmoralizante dos cariocas com as baratas! Houve também o fechamento da Universidade do Distrito Federal – um novo golpe. A experiência da UDF foi importante. Ele teve como colegas grandes intelectuais e artistas, como Portinari, de quem ficou próximo na época. Depois da UDF, Mário de Andrade foi incumbido de organizar a Enciclopédia Brasileira, no Instituto Nacional do Livro, um órgão do Ministério da Educação. Porém, foi mais um projeto frustrado.  Entretanto, as razões desse desamparo eram bem mais profundas. Ele nunca superou sua frustração. Mesmo voltando para São Paulo, em março de 1941, continuou muito deprimido. Nos últimos anos, Mário de Andrade ainda escreveu coisas importantes, como o magnífico poema que pode ser considerado seu testamento – Meditação sobre o Tietê. Mas ele morreu muito cedo, em fevereiro de 1945, com 51 anos!

FONTE:Revista de Historia /  Bruno Garcia e Rodrigo Elias