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sexta-feira, 30 de março de 2012

Modernismo com uma perspectiva filosófica

Para o filósofo Eduardo Jardim, o local é inspirador: o Salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, no Centro do Rio de Janeiro. Ao lado de um painel do pintor que dá nome à sala, no interior desse edifício representativo do Modernismo, construído entre 1937 e 1945, o professor da PUC-Rio conta por que decidiu estudar esse movimento cultural.


“Fiz Filosofia, mas tinha uma curiosidade grande pelas questões relacionadas à história da cultura brasileira. Então, no meu mestrado resolvi trabalhar o Modernismo com uma perspectiva filosófica”, explica Jardim. Desse trabalho nasceu seu primeiro livro, A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, de 1978, que será republicado este ano.

Nesta entrevista, o filósofo conta que descobriu aspectos “pouco explorados” ao organizar a cronologia do movimento e as direções que ele tomou. Fala ainda da importância de ter estudado Mário de Andrade, o autor que, em sua opinião, melhor formulou a doutrina moderna e que sentia uma profunda angústia por ver o movimento afastado da função social da arte.

Jardim defende que o Modernismo faz parte de “outra época”, mas sua importância para a História brasileira continua sendo insuperável: “Existe a permanência das ideias modernistas. Nada de tão forte veio substituí-lo”.

REVISTA DE HISTÓRIA Para você, que é filósofo, como começou o diálogo com a História?
EDUARDO JARDIM Primeiro preciso dizer como é fascinante dar esta entrevista neste lugar, o Palácio Capanema, no Salão Portinari, com um belíssimo painel do pintor que descreve os ciclos econômicos do Brasil, junto ao jardim de Burle Marx! É muito inspirador...  Pelo fato de eu ter vindo de uma formação em Filosofia, descobri coisas que tinham sido pouco exploradas pela história do Modernismo. Por exemplo, avaliei a presença das ideias de Graça Aranha na formulação da doutrina modernista e organizei, de modo novo, a cronologia do movimento e as direções que ele tomou nos anos 20. Esta entrada pela Filosofia me ajudou a ter uma ótica diferente da que era normalmente usada e a propor a discussão das bases doutrinárias do movimento.

RH O que é o Modernismo para você?
EJ É certo que há o Modernismo artístico e literário, que tem na Semana de 22 uma referência inaugural. Porém, o Modernismo é uma corrente de ideias bem mais ampla, da qual o movimento de 1922 foi um momento. Não devemos considerar apenas a arte e a literatura, mas também esta corrente de ideias na história intelectual brasileira, que tem mais ou menos 100 anos, que se iniciou no final do século XIX, com a geração de Sílvio Romero e de Euclides da Cunha, e que terminou nos anos 70 ou 80 do século XX, com o tropicalismo e outras manifestações. Mas, para me referir estritamente ao Modernismo literário e artístico, não há uma unidade doutrinária, já que, ao longo do tempo, as teses modernistas se modificaram. Houve também diversas orientações dentro do movimento. Houve um primeiro momento na história do Modernismo, o período que vai de 1917, ano da exposição da Anita Malfatti em São Paulo, até 1924, no qual existiu alguma unidade de pensamento. Todos imaginavam que o processo de modernização ou de atualização das linguagens artísticas e culturais no Brasil seria feito pela incorporação dos recursos modernizadores, que seriam buscados nas vanguardas europeias. Para eles, nesse primeiro momento, o processo modernizador dependia da incorporação de tudo que tivesse um aspecto moderno.

RH Foi um momento de ruptura?
EJ Os modernistas entendiam assim e queriam fazer oposição aos chamados “passadistas”. Até 1924 houve uma preocupação com a renovação estética. Modernizar significava incorporar o Brasil ao “concerto das nações cultas”, isto é, incorporar a parte ao todo universal, de forma imediata. Em 1924 houve um redirecionamento do Modernismo, com a publicação do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Nesse momento, passou-se a exigir que o processo de modernização não fosse mais feito de forma imediata, pela simples adoção de linguagens artísticas modernas, mas que ele dependia da afirmação dos traços nacionais da cultura brasileira. Seria por meio da afirmação da parte nacional que se daria a incorporação ao todo. A maneira de pensar o elemento nacional, neste segundo tempo, variou muito nos diversos grupos. A maneira analítica de pensar de Mário de Andrade contrasta com a de Oswald de Andrade no Manifesto da PoesiaPau-Brasil e, mais tarde, na Antropofagia. Oswald de Andrade rejeitou a análise e defendeu uma forma intuitiva de apreender o nacional. Também o grupo organizado em torno de Plínio Salgado, os verde-amarelos, pensavam diferente, e situavam-se mais próximos de Oswald de Andrade, ao menos do ponto de vista conceitual.

RH A partir disso, pode-se falar em modernismos, no plural e com m minúsculo?
EJ Pode-se falar em modernismos, sim, se pensarmos nas várias tendências do movimento. Mas há Modernismo com M maiúsculo, e com isso me refiro a uma base conceitual comum a muitas orientações. Ela determina o modo de ser da literatura, das artes, das Ciências Sociais e da História. É um modo de compreender o país em uma mesma chave, adotada por autores e artistas tão diversos como Euclides da Cunha, Sérgio Buarque, Hélio Oiticica, Gilberto Gil...

RH E o que dá uma coerência a esse movimento? O que une Euclides da Cunha e Gilberto Gil?
EJ A base conceitual dessa corrente é a crença na presença de duas linhas que se cruzam. A primeira tem a ver com o movimento de incorporação do Brasil ao todo, à ordem universal. Este é um desafio propriamente modernista, que não havia, por exemplo, no Romantismo. As questões dos modernistas são: como garantir a entrada do Brasil no concerto das nações cultas? Como nossa formação favorece ou prejudica essa entrada? Em que medida o Brasil dos sertões, descrito por Euclides, por exemplo, precisa ser liquidado para dar acesso ao mundo moderno? Será que as raízes do Brasil, ibéricas e rurais, dificultam o ingresso na modernidade? Estas questões estiveram na ordem do dia até os anos 70, até o Cinema Novo, a geração do tropicalismo...

RH E a segunda linha?
É uma linha vertical, que diz respeito à dimensão temporal, e que cruza com a primeira. Ela tem a ver com o curso da História e com os temas do desenvolvimento e do progresso; trata-se de uma concepção progressista de História. Na medida em que a incorporação horizontal acontece, significa que caminhamos temporalmente na direção de um Estado moderno situado no futuro. O cruzamento das duas linhas foi descrito de várias maneiras, mas a base conceitual é a mesma. Ela se quebra somente no final dos anos 70.

RH Por que ela se quebra?
EJ Toda discussão modernista supõe referências muito determinadas. Ela depende da crença na existência de um “dentro” e de um “fora”, da parte e do todo, de uma ordem mundial em que há um centro e uma periferia. A partir de 1980, pensar deste modo não funciona mais. Quem fala hoje em um “fora” e em um “dentro”? Não há mais a possibilidade de se situarem lugares tão diferenciados. Não existe mais centro e periferia. Portanto, não existe mais a possibilidade de se descrever o processo modernizador como um deslocamento da parte em direção ao todo. A própria noção de espaço atualmente é muito diferente daquela do século passado. Outro problema tem a ver com a concepção futurista de tempo, que valoriza o progresso. A ideia de que a humanidade caminha para melhor não é mais tão óbvia. Já não temos a confiança no futuro como tinham os autores modernistas.

RH Então o movimento ficou no passado?
EJ Nos anos 70 e 80, começamos a sentir a perda dessas referências doutrinárias. Essa perda se acentuou nas décadas seguintes. Hoje, pode-se afirmar que nossa discussão sobre o Modernismo é feita de fora dele, não mais de dentro. Vivemos outra época.

RH E o que veio para ocupar o lugar do Modernismo?
EJ Muitos ideais modernistas sobreviveram sem uma base real. Isso ocorreu porque nenhum outro movimento tão importante ocupou o seu lugar. Não sei se é o caso de se lamentar ou louvar esta situação de perda de referências. O fato é que, nos anos 60 e 70, a relação com o Modernismo era muito viva. Joaquim Pedro de Andrade releu Macunaíma no cinema; Zé Celso retomou a obra de Oswald de Andrade. Hoje, certamente há uma sobrevivência de temas modernistas, mas eles não representam uma força viva.
RH Os modernistas ainda são um filtro para olharmos o passado?
EJ A interpretação modernista do Brasil é a mais importante na nossa história intelectual. Hoje, já fora do Modernismo, temos que compreender suas bases e delimitar com clareza seus limites. Caminharemos com dificuldade na avaliação da nossa cultura se não reconhecermos a potência das ideias modernistas e o significado do seu esgotamento.

RH Muitos artistas e intelectuais modernos são próximos do Estado. Como você vê a relação dessas pessoas com o Estado no Brasil?
EJ Não existiu só uma maneira de os intelectuais se relacionarem com o Estado no período modernista. Falar de cooptação dos intelectuais modernistas pelo Estado Novo é simplificar demais o problema. Para o Estado Novo, no ministério Capanema, o problema da educação era muito mais importante que o da cultura. E no caso da educação, era mais importante o problema da universidade do que o do ensino básico, já que a preocupação era com a formação das elites. Na cultura, nem todas as áreas de atuação dos modernistas interessaram ao ministério Capanema. Por exemplo, muitas coisas pensadas por Mário de Andrade, que tinha uma visão democrática da expansão cultural, não serviam para o autoritarismo do Estado Novo. Outras manifestações artísticas, como a arquitetura, foram prestigiadas nessa época. Os arquitetos modernistas são responsáveis por grandes obras oficiais. Os grandes monumentos da arquitetura moderna foram este prédio do ministério em que estamos, o conjunto da Pampulha e Brasília. Mas essa discussão sobre arte e política é tão complexa que merecia outra entrevista.

RH Então essa presença do Estado no movimento é mais forte na arquitetura?
EJ Duas coisas interessavam ao Estado. A valorização e a preservação do patrimônio, que continha os traços da nacionalidade, e a edificação de monumentos arquitetônicos. Recuperar o passado do país, no sentido de afirmar uma identidade, era importante. A criação do Serviço do Patrimônio ia nessa direção. Seu propósito era dar uma fisionomia própria à história brasileira. A arquitetura, por outro lado, tinha uma visão projetiva, apontava para o futuro. Mas ela devia abrigar os traços arquitetônicos considerados nacionais, e estes estavam depositados no patrimônio da nação, nas obras do período colonial. Esta complexidade caracterizou muitas obras modernistas, não apenas a arquitetura.

RH Os modernistas valorizavam a arquitetura colonial em detrimento de outros estilos que também fizeram parte da História do Brasil?
EJ Vou começar por uma referência ao Patrimônio. O projeto do Patrimônio é de Mário de Andrade, de 1936, e a formulação final é feita pelo ministério. Além do que já disse sobre a valorização da arquitetura colonial como forma propriamente nacional, é preciso lembrar as razões estéticas apresentadas por Mário de Andrade. A arte colonial é considerada como dotada de limpeza e de economia formal. Para o modernista Mário de Andrade, havia muito de moderno na arte colonial, pois ele considerava a arte moderna com idênticos traços. Todas as outras manifestações da arquitetura, que apresentavam elementos mais decorativos, foram consideradas “formalistas”, individualistas, antimodernas e não nacionais.

RH Já que você falou do Mário de Andrade, qual é a importância dele para o movimento?
EJ Mário de Andrade é o autor que melhor formulou, do ponto de vista conceitual, a doutrina modernista. Isto aconteceu nas várias fases do Modernismo. Ele definiu a versão imediatista do primeiro tempo em textos como A Escrava que não é Isaura. Em seguida, na fase nacionalista, fez a proposta mais articulada da nova direção. Naquele momento, tratou de pensar a identidade nacional a partir da cultura popular e folclórica. A preocupação central de Mário de Andrade foi sempre com a dimensão social da arte.  A partir de determinado momento da sua vida – e isso coincidiu com sua vinda para o Rio de Janeiro, depois de sair da direção do Departamento de Cultura de São Paulo, afastado pelo Estado Novo –, ele passou a ter uma visão muito desencantada de seus próprios projetos. Isto se refletiu em uma avaliação profundamente crítica do movimento modernista em sentido geral. Isto fica muito claro na conferência comemorativa dos 20 anos da Semana de 1922 feita no Itamaraty.

RH Que críticas Mário de Andrade faz?
EJ Ele nota na arte moderna a presença de duas tendências: o individualismo e o formalismo. Elas estão articuladas, e não se sabe direito qual apareceu primeiro. Certamente dá-se na modernidade o aparecimento de uma figura nova, o artista moderno, que acredita que a arte é a expressão da sua individualidade. Se a arte é definida modernamente nesta chave individualista, corre-se o risco de perder sua dimensão social. Para Mário de Andrade, a função da arte era religiosa, comunitária. Como resultado do individualismo moderno surgiu o formalismo. Isto significou que as intervenções formais do artista passaram a ser resultado do seu capricho criativo. Em reação a esta situação, Mário de Andrade propôs, a certa altura, que houvesse uma conversão do artista a artesão, que o artista deveria se submeter às regras da arte-fazer. Alguns críticos notaram neste ponto uma tendência conservadora. De qualquer forma, esta visão esteve presente em várias outras propostas “construtivas” na arte brasileira, inclusive na poesia de João Cabral. Seria então o caso de perguntar sobre a importância de Mário de Andrade na definição destas propostas surgidas alguns anos mais tarde.

RH Ele está criticando uma geração?
EJ No final da vida, ele se distanciou muito da sua própria geração. Quando fez a palestra no Itamaraty, ficou tão emocionado que acabou em uma noitada que só terminou na manhã seguinte. Imagino que ele tenha tomado um porre na Lapa carioca. No entanto, um dos amigos da sua geração, Carlos Drummond, que estava presente, deu uma declaração mais tarde dizendo que “soube depois que Mário de Andrade tinha ficado muito emocionado com tudo aquilo”. Isto ilustra o descompasso entre Mário de Andrade e os velhos amigos, naqueles anos da guerra. Foi também nesse momento, final dos anos 30 e início dos 40, que ele se aproximou de uma geração bem mais jovem, de jovens esquerdistas, entre eles Carlos Lacerda e Moacir Werneck de Castro, e, em São Paulo, do grupo da revista Clima, de Paulo Emílio e Antonio Candido. Eles estão sempre provocando o amigo mais velho a assumir compromissos políticos mais radicais. Na verdade, Mário de Andrade oscilou muito quanto a este ponto. Mas nunca cedeu inteiramente, em sua obra, ao apelo da política, apesar de suas declarações no final da vida. Há uma carta dirigida a Helio Pellegrino em que ele explicou, com muita clareza, sua posição, que distingue o sentido social da arte da arte de combate. 

RH De onde surgiu essa apreciação mais crítica por parte de Mário de Andrade?
EJ Tudo começou em 1935, com o convite para ser diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O governador do estado era Armando Sales de Oliveira. Mário de Andrade viu no convite a possibilidade de realização do projeto modernista. Armando Sales de Oliveira era candidato à Presidência da República na eleição de 1939, e, caso ganhasse, Mário de Andrade certamente teria uma posição nacional de destaque. Mas no final de 1937, com o Estado Novo, o grupo de Mário de Andrade foi afastado. Getulio colocou um interventor em São Paulo, o que levou a seu afastamento da chefia do Departamento. Mário de Andrade sofreu enorme abalo com isso. Ficou tão decepcionado que decidiu sair de São Paulo e ir para o Rio de Janeiro, onde foi professor da Universidade do Distrito Federal e, mais tarde, funcionário do Ministério da Educação. Foi neste contexto que Mário de Andrade fez uma revisão de sua vida e empreendeu uma crítica ao movimento de que tinha sido considerado o “papa”. Também a guerra afetou muito o estado de espírito do poeta. A tomada de Paris pelos nazistas foi um golpe duro. Isto tudo o levou a radicalizar suas posições, de um ponto de vista político.

RH Como a vida do Mário de Andrade no Rio de Janeiro influenciou sua visão crítica? 
EJ Ele foi morar na Rua do Catete, em um prédio que existe até hoje. Há cartas que mencionam seu estranhamento com a cidade. Fala do calor da cidade, e, num trecho de uma crônica deliciosa, do contato desmoralizante dos cariocas com as baratas! Houve também o fechamento da Universidade do Distrito Federal – um novo golpe. A experiência da UDF foi importante. Ele teve como colegas grandes intelectuais e artistas, como Portinari, de quem ficou próximo na época. Depois da UDF, Mário de Andrade foi incumbido de organizar a Enciclopédia Brasileira, no Instituto Nacional do Livro, um órgão do Ministério da Educação. Porém, foi mais um projeto frustrado.  Entretanto, as razões desse desamparo eram bem mais profundas. Ele nunca superou sua frustração. Mesmo voltando para São Paulo, em março de 1941, continuou muito deprimido. Nos últimos anos, Mário de Andrade ainda escreveu coisas importantes, como o magnífico poema que pode ser considerado seu testamento – Meditação sobre o Tietê. Mas ele morreu muito cedo, em fevereiro de 1945, com 51 anos!

FONTE:Revista de Historia /  Bruno Garcia e Rodrigo Elias

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