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terça-feira, 14 de agosto de 2012

Do beliscão ao beijo: uma história dos gestos de amor

Memórias de um Sargento de Milícias (1853), de Manuel Antônio de Almeida, é um dos livros mais famosos e engraçados da literatura brasileira. Nele são contadas as aventuras e malandragens do filho de um casal português que, nas primeiras décadas do século 19, veio morar no Rio de Janeiro. O início do livro mostra como os pais do herói se conheceram: “estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.”
Por incrível que pareça, outros textos mostram que essa descrição não é pura invenção literária. No Portugal do século 18 – e, muito provavelmente, também no Brasil –, o beliscão, como expressão de amor, era bastante difundido. Havia até uma tipologia de beliscões, que variavam de acordo com as circunstâncias. Entre os recém-conhecidos, era de bom-tom beliscar “de pincho”, aplicando levemente a torção sobre a pele. Para os mais íntimos valia o beliscão “de estorcegão”, também conhecido como “enérgico”. A moda era tão corrente que houve quem discutisse a necessidade de construir divisórias no interior das igrejas para impedir belisquinhos e beliscões durante a missa.
Os estudiosos desse gesto associam-no ao “namoro camponês”. Beliscões, pisadas de pé e mútuos estalos de dedos consistiam em rituais que simbolizavam a dura vida rural. No universo camponês das sociedades pré-industriais, o domicílio familiar não significava somente local de vida social, mas também de produção de quase todos os bens do cotidiano. Do alimento às roupas, tudo era produzido pelo casal. Daí os rituais que simbolicamente avaliavam a resistência e força dos noivos.
Ao contrário do que se poderia imaginar, o gesto em nada tinha de sadismo ou maldade – ou não era compreendido dessa forma. Muito menos representava uma atitude machista, pois os beliscões eram compartilhados por homens e mulheres. Talvez a forma mais fácil de entender o que foge à nossa compreensão seja através do contraste com a marca ritual do namoro de nossos dias: o beijo. Tal gesto também tem uma longa história. Durante a Idade Média beijar era uma forma de reconhecer poder. Os nobres, por meio do beijo na boca, selavam pactos com seus vassalos. Aos poucos, trovadores medievais foram se apropriando desse gesto para expressar o amor. E ele passou a significar que, na relação amorosa, a mulher era a suserana e o homem, o vassalo; do pacto senhorial também foi copiado o beijo na mão da amada.







Toda essa tradição irá mudar no século 19, período marcado pela industrialização e urbanização, com o surgimento de novas classes sociais. Os burgueses e proletários dos novos tempos adotaram o “beijo” como forma de expressão do amor. Por quê? Ora, não é de se estranhar que as novas classes dominantes copiassem as atitudes refinadas das elites anteriores. Aliás, isso podia até ser prática, já que, desde fins do Antigo Regime, era comum a união entre homens burgueses e mulheres nobres.

Também conspirava a favor do “beijo” o fato de a família, no século 19, ter deixado de ser um local de produção para se tornar apenas um espaço de convívio social. Aos poucos, os casais refinaram seus rituais amorosos. Isso, com certeza, não ocorreu de uma hora para outra. Nem se difundiu simultaneamente em todas as regiões e grupos sociais. Tornar tais comportamentos um objeto de estudo revela um caso limite do conhecimento do passado: mesmo o gesto mais íntimo de nosso cotidiano, mesmo aquilo que ingenuamente acreditamos pertencer à “natureza humana” sofreu mudanças ao longo do tempo. Descobrir e interpretar essas transformações é fazer da história uma aventura.
FONTE: Aventuras na História / Renato Venâncio

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