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domingo, 13 de outubro de 2013

Negros formaram ligas de futebol informais no início do século XX













Elite branca e racista monopolizava 
os campeonatos oficiais


Considerado hoje o mais democrático dos esportes, o futebol volta e meia tem a reputação arranhada pelo preconceito racial. No início do mês, a Fifa reuniu sua força-tarefa para discutir punições contra a discriminação. É um recado claro para dirigentes como o português Nuno Lobo, denunciado esta semana à União das Federações Europeias de Futebol (Uefa). Em 2011, à frente da Associação de Futebol de Lisboa, ele chamou o jogador brasileiro Hulk de “macaco”. 

O preconceito tem raízes profundas na história do esporte. No início do século passado, o acesso às quatro linhas do gramado era vetado a negros e mulatos.

Quando Charles Miller trouxe a primeira bola de futebol para o Brasil, o esporte logo desbancou o turfe e o remo como preferência nacional. Mas era marcado por contradições. Brancos construíram estádios, negros improvisaram campos de várzea. Brancos trajavam uniformes de marinheiro e limpavam o suor com lenços, negros usavam barbante para amarrar o meião. Brancos comemoravam as partidas com uísque. Negros, cachaça.

— O futebol, assim como os Jogos Olímpicos, era considerado um resgate dos valores gregos, a união da inteligência com beleza corporal, uma mistura de racionalismo com o ideal de conquista — descreve Carlos Alberto Figueiredo da Silva, autor do livro “Racismo no futebol”. — Daí vem a ideia do “fair play”, do cavalheirismo. Esses valores nobres seriam exclusivos da elite branca.

Em algumas cidades, os negros, impedidos de disputar os torneios, criaram suas próprias ligas. Entre os anos 1920 e 1930, São Paulo chegou a contar com 12 clubes disputando o campeonato informal.

— Algumas equipes eram extintas, mas logo depois outras eram criadas — lembra Petrônio Domingues, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Sergipe (UFS) e pesquisador da trajetória dos times de futebol de negros em São Paulo. — O futebol é um exemplo da barreira enfrentada pelo negro para ser inserido na sociedade depois da libertação dos escravos.

Os jogos de 13 de maio
Havia, no entanto, uma vez no ano em que os melhores de cada liga se encontravam. Entre 1927 e 1939, sempre no dia 13 de maio — quando é comemorada a abolição da escravatura — ocorria o clássico “preto x branco”. A equipe vencedora em três anos consecutivos levaria a Taça Princesa Isabel. Não há registro do placar de todas as disputas, mas, entre os resultados conhecidos, os negros venceram quatro vezes; os brancos, duas; e houve um empate. O mulato Arthur Friendenrich, considerado o melhor jogador brasileiro antes de Pelé, chegou a participar do desafio, mas vestindo a camisa dos brancos.

Criador do escudo do Corinthians e jogador do time entre 1922 e 1927, o artista plástico Francisco Rebolo, em depoimento ao sociólogo Antônio Gonçalves, condenou o preconceito contra os negros e lembrou a comoção popular causada pelo esporte: “Eu me recordo de que no Corinthians surgiu um mulato chamado Tatu, que jogava muita bola, era um craque. Certa vez, num jogo entre Corinthians e Paulistano, o Tatu marcou o gol da vitória. A cidade ficou tomada, com gente fazendo discurso, já foi uma vitória do povão”.

Os campeonatos negros também seriam vistos em outras cidades. No Rio Grande do Sul, por exemplo, Pelotas teve a Liga José do Patrocínio; na capital do estado, a Liga Porto Alegrense, que se eternizou por seu nome pejorativo — a Liga da Canela Preta.

No Rio, segundo Figueiredo da Silva, o convívio entre morro e asfalto facilitou o intercâmbio futebolístico de negros e brancos. Veio da cidade o primeiro jogador negro a disputar uma partida oficial do esporte — Francisco Carregal, pela equipe do Bangu, em 1904.

A ‘arianização’ do esporte
Ainda assim, o preconceito era explícito. Equipes da Zona Sul, mais elitistas e preparadas, como Flamengo, Fluminense e Botafogo, aliavam-se aos times pobres só para incentivá-los a derrotarem seus adversários diretos. Os brancos se recusavam a jogar em feriados — esta prática era relegada aos “sem família”. 

Quando o Vasco tentou disputar a primeira divisão carioca, em 1924, a associação futebolística condicionou sua participação na liga à retirada de doze negros e mulatos de seu time. Era, como descreveu o jornalista Mário Filho, uma campanha pela “arianização do futebol brasileiro”. O Vasco se recusou a cumprir a medida e preferiu competir entre os times pequenos.

— Foi o primeiro manifesto mundial contra o racismo de uma entidade esportiva — destaca Figueiredo da Silva. — O Vasco era formado por dois grupos excluídos: os mestiços e a colônia lusitana, que buscava afirmação diante da nova elite brasileira. Já o Bangu tinha uma fábrica comandada por ingleses, mas os operários eram mulatos. A partir dos anos 1930, com a profissionalização do futebol, houve uma percepção do talento dos negros e, aos poucos, eles ganharam espaço nos grandes clubes.

FONTE: O GLOBO / RENATO GRANDELLE

sábado, 12 de outubro de 2013

Como era a infância em Esparta














Em Esparta, o Estado tomava os meninos das famílias para treiná-los na arte da guerra

Um visitante de uma cidade do norte chegou a Esparta em 480 a.C. Foi bem recebido e experimentou a melas zomos, prato típico e orgulho da cidade-estado: uma sopa à base de porco, vinagre, sal e (muito) sangue suíno. Depois de provar a iguaria, sua conclusão foi rápida: "Agora entendo o motivo de os espartanos estarem sempre tão preparados para morrer". A anedota sobre a sopa sangrenta resume bem a vida da cidade. Os homoioi, os cidadãos espartanos, cresciam comendo mal e viviam com fome, enfrentavam-se entre si e suportavam um treinamento militar tão intenso que até soldados do Bope pediriam para sair na primeira semana. Os filhos da elite da cidade tinham vida dura desde o berço. Isso se o bebê sobrevivesse ao parecer do conselho dos anciãos - há referências textuais em Xenofonte e Plutarco de que bebês fora dos padrões da cidade eram mortos, arremessados ou abandonados, no monte Taigeto. "O infanticídio era comum na Grécia antiga, mas Esparta era a única a praticá-lo colocando a decisão nas mãos do Estado, e não na dos pais", afirma Paul Cartledge, autor de Spartans (sem edição em português) e professor de cultura grega na Universidade de Cambridge. "A palavra final era do conselho dos anciãos: eles é que decidiam se a criança estava apta a continuar viva ou teria de ser morta."

A prática do infanticídio era apenas o início da educação espartana, a agoge, focada no militarismo, na disciplina e na obediência completa. Depois de passar os primeiros 7 anos de vida com a família, os meninos eram enviados para centros de treinamento para serem educados e transformados em guerreiros. Até os 11 anos, o jovem espartano passava pelo primeiro ciclo, a meninice, em que recebia o treinamento militar básico.

O menino estava ali para aprender a manejar lanças, espadas e escudos, além de praticar esportes como corrida e natação. A alfabetização não era, de acordo com Plutarco, o mais importante. O foco era a obediência - não ler e escrever. "Eles aprendiam as letras quanto fosse necessário: todo o restante do treinamento era direcionado para resposta rápida aos comandos, resistência, força e vitória nas batalhas", escreveu Plutarco na sua obra sobre a vida de Licurgo, o principal legislador espartano.

No dia a dia, a educação era supervisionada por um magistrado responsável, mas a disciplina (e as punições) era imposta pelos colegas mais velhos. Sessões de açoites eram comuns, assim como humilhações públicas. Quem já passou por uma escola sabe bem que esse modelo tem o potencial de incentivar a crueldade dos mais velhos contra os mais novos. Mas o uso da crueldade do grupo não era algo inesperado. "A ideia básica era deixar os meninos duros, resistentes, no melhor de sua forma física. Acima de tudo, eles tinham que ser autossuficientes e capazes de suportar a dor", afirma Cartledge.

Entre os 12 e os 15 anos, o rapaz passava pelo segundo estágio da agoge. Nessa fase, além dos exercícios tradicionais, havia maior foco no trabalho em grupo, além da maestria no uso das armas. Corridas com cavalos e com bigas também começavam a acontecer. Era definido um mestre, um homem mais velho que acompanhava individualmente os avanços do protegido - tanto militares quanto pessoais. Há discussão acadêmica sobre isso, mas é grande a probabilidade de que a educação entre discípulo e mestre envolvesse relações homoeróticas - traço comum nas cidades-estado gregas.

É durante o segundo ciclo que os meninos recebiam apenas um pedaço de pano para usar como túnica, a única roupa que podiam vestir durante o ano em uma região em que a temperatura chega aos 40 ºC no verão e -5 ºC no inverno. A restrição de comida também era parte do treinamento. Os jovens soldados recebiam apenas o necessário para sobreviver (inclusive da melas zomos) - quantidade que não chegava nem perto da saciedade. Constantemente com fome, os jovens só tinham uma solução: roubar comida. Para os espartanos, não havia problema algum em furtar alimentos - o problema estava em ser pego.

Outro caso contado por Plutarco ajuda a ilustrar a fome e a obediência cega dos aprendizes de soldado. O historiador conta que um jovem conseguiu apanhar um pequeno lobo selvagem para comê-lo. Ao ser descoberto, manteve o lobo sob a sua capa enquanto ouvia o sermão do supervisor. "Sem demonstrar dor, o menino ficou ouvindo o sermão enquanto o lobo o atacava embaixo da capa", afirma Maria Aparecida de Oliveira Silva, professora de história antiga na USP e autora do livro Plutarco Historiador: Análise das Biografias Espartanas. De acordo com Plutarco, o jovem suportou o ataque, até que morreu. Mais do que revelar algo factual, ressalta Maria Aparecida, esse tipo de história era fundamental para provar como se comportava um verdadeiro espartano. "Tais episódios eram contados para ilustrar a coragem dos espartanos, bem como a obediência cega aos seus costumes e às suas leis."

A partir dos 16 anos, começava a fase final da preparação, que ia até os 20. Era nesse momento que o treinamento passava a ser prático. Os hoplitas - guerreiros com grandes escudos redondos, lanças longas sobre o ombro direito e espada embainhada - eram unidos em grupos de até 15 para exercícios de guerra. Cada grupo era chamado de falange. Nas batalhas, as falanges se enfrentavam até que um soldado cedesse e as mortes começassem a acontecer aos borbotões. Além da força física e da resistência, era necessário muita confiança no seu parceiro ao lado - se ele correr ou cair, a lança rival aproveita o espaço e você está morto.

É por isso que um ditado comum sobre as falanges é que elas são tão fortes quanto o seu elo mais fraco. O treinamento espartano desde o início enfatiza isso - a falange deveria ser uma entidade única.

E isso justificava o treinamento rígido. Durante toda agoge, o papel do Estado espartano era gigantesco. Não se tratava apenas de deixar o filho na escola todas as manhãs e ele crescer até cursar uma universidade, mas a entrega completa do futuro cidadão à Esparta. E só havia um caminho possível: ser soldado. "Aos 7 anos, a criança era realmente doada ao Estado para a educação e, a partir dos 18 anos, começar a ter papel na vida da cidade. Basicamente, o objetivo final da agoge era incutir a ideia de que para viver em Esparta era preciso deixar de lado prazeres e interesses individuais", afirma José Francisco de Moura, historiador especializado em Esparta e professor de história na Universidade Veiga de Almeida.

Não há muitas evidências arqueológicas sobre a educação feminina, mas os textos clássicos indicam que as meninas recebiam algum treinamento, cujo foco estava na excelência física. Em resumo, as espartanas eram vistas como parideiras - as futuras mães dos guerreiros. "Como resultado da ênfase na reprodução, as meninas eram criadas para serem o tipo de mãe que Esparta necessitava. Uma mãe precisa ser saudável, educada de maneira apropriada e com bastante conhecimento dos valores espartanos", escreveu Sarah B. Pomeroy em Spartan Women (sem edição em português). "Apenas mulheres que morriam durante o parto podiam ter seu nome escrito na lápide, o que acontecia somente com os homens que morriam em batalha." Na prática, o que as evidências arqueológicas dão conta é que as mulheres espartanas estavam em forma - as estátuas mostram músculos definidos nos braços e nas coxas. Além disso, tinham fama de serem lindas: Helena, a mulher mais bela do mundo antigo, antes de ser de Troia e de virar a cabeça de Páris, era Helena de Esparta.

O casamento era uma instituição completamente diferente entre os espartanos. Feito por arranjos entre as famílias dos homoioi, a união não envolvia uma vida em conjunto entre marido e mulher. Ao contrário, o homem devia visitá-la apenas durante a noite para o ato sexual e voltar para a sua falange. Por isso, não era raro um homem de 30 anos jamais ter visto a sua mulher à luz do dia. Afinal, ele só tinha permissão de começar a morar com a esposa a partir dos 30 anos. A cerimônia era, evidentemente, espartana. A mulher tinha os seus cabelos cortados curtos, como os de um homem, e recebia uma toga masculina. Era nessa noite que o marido iria invadir a casa da esposa pela primeira vez para consumar o casamento. E voltar ao grupo assim que acabasse.

Admirada por priorizar o público sobre o privado, Esparta foi a inspiração de uma série de obras-primas, como a República de Platão, e até de crimes contra a humanidade - a eugenia, popular no começo do século 20, usava o exemplo espartano como base. Longe da idealização clássica ou moderna, os poucos artefatos recuperados e as escassas referências textuais ajudam a compor um retrato de uma cidade na qual a vida não era nada fácil - e onde a mão do Estado entrava nos lares em busca de crianças que seriam transformadas em guerreiros.

Guerra perpétua

Esparta vivia em permanente estado de sítio. Surgida como um pequeno conjunto de aldeias em torno do século 10 a.C., Esparta se desenvolveu agressivamente nos dois séculos seguintes para se tornar a maior cidade-estado grega em território. A base da sua expansão estava na aquisição de terras, de cidadãos livres para pagamento de taxas e de escravos, chamados hilotas - prisioneiros de guerra de outras regiões, que eram obrigados a realizar o trabalho braçal.

Apesar de a escravidão ser um traço comum em praticamente todas as comunidades gregas daquele período, os espartanos foram além. Descartaram a tradição quando, diferentemente dos rivais, como Atenas e Argos, passaram a escravizar os seus próprios vizinhos gregos. Os primeiros a cair foram os messênios, que tinham a mesma etnia dórica dos espartanos. Estimativas dão conta de que havia de 10 a 20 vezes mais messênios e cidadãos livres do que cidadãos espartanos na cidade, por volta de 500 a.C.
  
FONTE: AVENTURAS DA HISTÓRIA

Black Blocs, modismo ou ameaça?









Os Black Blocs são apresentados na mídia mundial como uma organização que poderia ser rotulada como neoanarquista. Neo talvez, mas ainda afeita aos tradicionais coquetéis molotov. E, como manda o figurino histórico, manifestando-se com estardalhaço e renovada simbologia anticapitalista. Daí a preferência por ataques a autosserviços bancários e a vitrines e fachadas de fast food e marcas e grifes transnacionais de luxo. Curiosamente, na semana final de setembro último, a fotografia de um homem segurando um Big Mac e uma Coca-Cola sob o vão do Masp, na Avenida Paulista, foi publicada pela Folha de S.Paulo com intrigante legenda que o identificava como “coordenador de manifestantes mascarados”. Também multinacionais pelo menos na nomenclatura, os Black Blocs são uma novidade no Brasil. Mas são estudados há três décadas por atuação semelhante na Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Turquia, Egito, Grécia, Chile e México. Não nessa ordem, porém sempre se apresentando como “estudantes, trabalhadores, desempregados e revoltados” segundo o Manifeste du Carré Noir, divulgado no Québec, Canadá, em 2012. Um manifesto tipicamente “classe média burguesa”. E que parece definir a “ideologia” Black Blocs.
A ação sem fronteiras dos Black Blocs não passaria de mera imitação de jovens rebeldes em busca de um “modismo extra-rock”. Moda esta desconcertantemente colada a protestos quase sempre autênticos. O que poderia conferir um desesperado idealismo à atuação deles. Ações que, no entanto, perderiam a aura romântica ao serem descobertas como premeditadas. O imbróglio é, assim, sinistro. E tanto mais ao gosto da mídia em busca de “sensações de primeira página”. Mas há quem veja no surgimento dos Black Blocs, país após país, o patrocínio de organismos apátridas, agências de inteligência e insuspeitadas “reinsurgências de direita”. Seriam organismos direcionados para implantar o caos em nações-chave da economia e da política mundiais. Se a suspeita for suscetível de comprovação – embora peremptoriamente negada na internet pelos interessados –, então os Black Blocs poderiam ser vistos (e tratados) como uma ameaça à democracia.
“Militâncias secretas”
Explicar esses grupos – com anárquicos uniformes de peças negras e máscaras ninja – tem mobilizado articulistas de todos os matizes e de todas as mídias. Com uma característica que lhes agrega um indefinido mistério de improvisada guerrilha urbana, os Black Blocs continuam assim a desafiar editorialistas locais e estrangeiros. A tendência então é considerar o vandalismo, irrefreável pelas “forças da ordem”, como um “defeito de governabilidade”. Ou inabilidade inerente à exacerbada democracia. Ou ainda ingênua redundância que atribui exigências de “mais democracia” como “leitmotiv espiritual” das manifestações. Aliás, só possíveis exatamente porque a democracia é plena na garantia de manifestações. Foram importantes jornais americanos e europeus – como New York Times e El País – que primeiro editorializaram os “anseios de mais democracia” no Brasil, dando-lhes similitude com a contracultura em Berlim na década de 1980.
Os editoriais e artigos consultados desde julho último na mídia impressa e em sites do Rio e São Paulo questionam em contrapartida também o alcance e a autenticidade da soberania popular em manifestações que não conseguem se desgarrar da violência. Cientistas políticos que se abstraem do vandalismo considerando o ato criminoso como casos em separado de polícia, veem nas manifestações um sadio exemplo de “liberdade democrática em ação com garantias constitucionais”. Não importa se os manifestantes representam ou não uma vontade majoritária. É a liberdade ampla e irrestrita rolando nas passeatas, mesmo que elas expressem apenas desejos de cabeças comunitárias, pontas de lança classistas e amostragem de grupos menores. Em comum, todos parecem movidos pelo impulso da mídia (TV principalmente) e pela mobilização político-partidária nos dois extremos do “espectro ideológico”. O que parece um contrassenso. Embora energeticamente os extremos se atraiam. E se completem. É exatamente neste exercício tão democrático que as passeatas acabam por oferecer inapeláveis oportunidades para grupos se infiltrarem. E poderem confrontar e destruir. Danificando primeiro as próprias causas e razões de que se valem e movem multidões. Uma delas, possivelmente a causa mais agredida, é a defesa da mobilidade urbana.
Nas ruas “por dever constitucional de garantir e orientar as manifestações”, a polícia acaba incluindo-se no rol dos vândalos. Conquistam mesmo mais antipatias ao se submeterem ao arbítrio do despreparo e da truculência inerente ao mister policial. No caso das PMS há notório resquício da bem recente ditadura militar quando a repressão sem limites era ordem e rotina. O paradoxo democracia/repressão teria como pretexto a proteção de áreas públicas com seus aparatos de serviços e monumentos. Todo esse conjunto de dificuldades e obstáculos ativa ainda mais as minorias violentas. Neste momento estratégico é que o embate manifestação- polícia pode ser visto como uma radical competição esportiva proibida. E por isso mesmo mais atrativa para “entusiastas militâncias secretas”. Afinal não é este o espírito empolgante dos videogames? E não é aí que mora o potencial maior do modismo juvenil?
Experiências do Norte africano
As últimas manifestações relatadas na mídia esclarecem que as depredações e o vandalismo não são mesmo consequência do embate fortuito. Tomadas predominantemente por militantes de outro fenômeno recente – conhecido por Mídia Ninja (Ninja de “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”) – são imagens e testemunhos que só se fazem possíveis porque são colhidos “heroicamente bem de perto” mostrando toda uma evidência de premeditação nos quebra-quebras. Evidência que não mais se discute. O que se questiona é “a impunidade do frenesi predatório” que dá lugar e vez ao medo ante a simples necessidade de trabalhar, voltar para casa, estudar, divertir-se, transitar.
Nessas horas – sempre as mais críticas da mobilidade e em áreas vitais da cidade – o cidadão comum queda-se desamparado. Sua revolta assume então o lugar da incompreensão. E a confusão dá oportunidade a que o intuito declarado ou oculto dos predadores mascarados seja alcançado no despertar de sentimentos de necessária proteção por vezes fascistas. Como diz Francis Depuis-Déri, professor de Ciência Política da Universidade Quebec à Montreal (UQAM) autor do livro (sem tradução para o português) “Les Black Blocs” (UQAM), ouvido em 07/09/2013 por Carolina Mendonça da BBC Brasil, “a internet e a crescente insatisfação com os governos e a economia Impulsionam o movimento”. Francis Depuis conta que pesquisa o grupo há dez anos. E explica que “a internet se tornou seu principal canal de comunicação porque permite que os grupos interajam rapidamente e organizem protestos”. Nada que já não tenha sido mostrado, inclusive pela Mídia Ninja em exclusivos vídeos nervosos no meio da tormenta predatória. O que induz à conclusão que de certa forma também os repórteres do Mídia Ninja participam, com seus rústicos equipamentos de captura de imagem, dos propalados “videogames de rua”. Porque também os Mídia Ninja, no exercício da liberdade de informar, são hostilizados pela polícia. E não poucas vezes pelos vândalos “profissionais ou de ocasião”.
Materializando em livro um pensamento-chave de Jean-Paul Sartre, Nelson Padrella publicou em plena ditadura militar o seu O Fascismo é um Estado de Espírito (Edição do Autor, 1969). Hoje temos o direito sem censura a um bom exercício antifascista: pinçar nos jornais daqui e de fora as análises mais importantes que se publicam a propósito ou paralelamente a esta propalada ânsia brasileira de mais democracia e não de volta à ditadura. Ânsia que foi posta na mesa/ruas principalmente pela imprensa internacional subitamente surpreendida por uma pretensa e tardia primavera brasileira, a exemplo dos climas de flores democráticas que cresceram no Leste Europeu, na Turquia e até com as malfadadas experiências afogadas em sangue no Norte africano. Dedo e metralhadoras de agências de inteligência tipo CIA e Mossad estão, é claro, presentes e mais ativos do que nunca notadamente no Oriente Médio. A missão digital denuncia-se para demonstrar, por exemplo, que tal e qual governo – populista, islâmico, socialista? – são incompatíveis com a democracia. Portanto, concluem análises espiãs: melhor seria derrubá-los...
A doença das democracias jovens
Óbvio que a imprensa estrangeira vê também nas manifestações que varrem as principais cidades brasileiras, São Paulo e Rio à frente, uma tendência resultante da desgraçada e inexpugnável globalização político-econômica. Talvez mesmo um efeito manada sócio-política, já que o fenômeno da carneirada dirigida não se restringe mais às finanças especulativas.
A “ameaça Black Blocs” insere-se na análise do cientista político Dani Rodrik, professor de Ciências Sociais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, Nova Jersey. Em tradução de Rachel Warszawski, foi publicada pelo Valor Econômico na página A13, edição de 14/08/3013. É um texto antológico, não fosse Rodrik autor do badalado The Globalization Paradox: Democracy and the Future of de World Economy (Paperback – 2013), Sobre as armadilhas democráticas que podem levar ao autoritarismo, diz Rodrik: “A democracia repousa num jogo implícito de concessões mútuas entre grupos adversários, segundo o qual cada um concorda em defender os direitos do outro em troca de reconhecimento de seu direito de governar caso vença uma eleição.” E continua:
“As cláusulas constitucionais por si só não podem garantir esse resultado, pois os ocupantes do poder podem facilmente anulá-las. Em vez disso, normas de comportamento político correto precisam ser incorporadas pelas instituições permanentes do Estado – seus partidos políticos, parlamentos e tribunais – a fim de evitar o abuso de poder. O que sustenta essas normas é a consciência de que miná-las terá consequências prejudiciais para todos. Se eu não defender os seus direitos quando estiver no poder hoje, você terá poucos motivos para respeitar os meus quando subir ao poder amanhã. Quando uma força externa, como as Forças Armadas, interrompe esse jogo, diretamente ou porque uma das partes pode contar com sua intervenção, a dinâmica do comportamento político muda de forma irreversível. A quebra de continuidade dos partidos políticos, dos trabalhos parlamentares e dos processos judiciais estimula o surgimento de cálculos de curto prazo e alimenta práticas antiliberais. Essa é exatamente a doença das democracias jovens” (www.joject-syndicate.org).
Doenças que estão sendo expostas nas ruas, para o bem – dado às reivindicações autênticas – ou para mal, com o surgimento local dos grupos de ataque à democracia como os Black Blocs.
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FONTE: José Alves Pinheiro Junior / OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA