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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Martinho Lutero














“Quando a escola progride, tudo progride”

Fundador do protestantismo foi um dos
 responsáveis pela concepção de ensino
 público que serviu de modelo para a 
escola moderna no Ocidente

Martinho Lutero nasceu em 1483 em Eisleben, norte da Alemanha. Seus pais queriam que fosse advogado,mas ele procurou formação num mosteiro em Erfurt. Aos 25 anos, foi para a Universidade de Wittenberg, onde se formou em estudos bíblicos. Numa viagem a Roma, ficou escandalizado com os costumes do clero. Ao voltar, iniciou carreira de professor e pregador, sob proteção do príncipe Frederico, o Sábio. Em 1517, Lutero publicou suas 95 teses teológicas. Quatro anos depois foi excomungado pelo papa Leão X e reafirmou suas convicções perante os governantes alemães, na Dieta (reunião parlamentar) de Worms, de onde saiu proscrito. Após um ano refugiado, sob proteção de amigos, retomou a vida religiosa em Wittenberg. Em 1525, casou-se com a ex-freira Katherina von Bora. Nas duas últimas décadas de vida, ganhou prestígio popular, enquanto o apoio dos governantes variava com as circunstâncias. Em 1546, morreu durante visita a sua cidade natal.


Movido pela indignação e pela discordância com os costumes da Igreja de seu tempo, o monge alemão Martinho Lutero foi o responsável pela reforma protestante, que originou uma das três grandes vertentes do cristianismo (ao lado do catolicismo e da Igreja Ortodoxa). O nascimento do protestantismo teve profundas implicações sociais, econômicas e políticas. Na educação, o pensamento de Lutero produziu uma reforma global do sistema de ensino alemão, que inaugurou a escola moderna. Seus reflexos se estenderam pelo Ocidente e chegam aos dias de hoje.

A idéia da escola pública e para todos, organizada em três grandes ciclos (fundamental, médio e superior) e voltada para o saber útil nasce do projeto educacional de Lutero. “A distinção clara entre a esfera espiritual e as coisas do mundo propiciou um avanço para o conhecimento e o exercício funcional das coisas práticas”, diz o pastor Walter Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.

Venda de indulgências

Embora nunca tivesse planejado uma cisão na Igreja, Lutero dedicou a maior parte de sua vida à polêmica doutrinária em torno da fé cristã. Sua produção intelectual foi intensa e erudita, e seus atos, graças ao surgimento da imprensa e do clima de descontentamento social, ganharam vasta repercussão. Apesar da complexidade do cenário, pode-se identificar dois fatores que desencadearam a dissidência de Lutero.


O primeiro foi à venda de indulgências pela Igreja. Segundo esse costume, que se iniciou na última fase da Idade Média, os fiéis podiam comprar, de um representante do clero, parte da absolvição de seus pecados. A prática era oficial, aprovada pelo papa e vinha acompanhada de um ritual solene. O comércio de indulgências representava uma espécie de resumo do que havia de mais condenável no comportamento da Igreja daquele tempo: ganância, ostentação, arbitrariedade e mundanismo. As deturpações do cristianismo incomodavam os poderes locais e repugnavam os intelectuais.

Lutero sempre havia pregado contra as indulgências, mas o que o levou a realizar um protesto público, em 1517, foi a venda de uma indulgência especial, que oferecia privilégios específicos, lançada pelo Vaticano para financiar a reconstrução da Basílica de São Pedro. Contra ela, Lutero elaborou 95 teses, criticando as práticas eclesiásticas, e afixou-as na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Foi o início do conflito entre o monge alemão e a autoridade papal.

Uma nova classe

A segunda grande inquietação de Lutero tinha origem doutrinária e o atormentou durante seus anos de formação. Ele não aceitava o princípio, então dominante no cristianismo, de que a justiça divina se manifestava, no plano terreno, como um julgamento dos atos dos homens. Para Lutero, isso produzia medo e tornava praticamente impossível o sentimento espontâneo de amor a Deus. A indignação de Lutero só se dissipou quando, ao interpretar os Evangelhos, concluiu que os homens vivem por uma graça de Deus e que a justiça divina é revelada pela leitura das escrituras, de modo passivo e independentemente dos méritos ou ações de cada um durante a vida. Foi o que se tornou conhecido como doutrina da salvação pela fé.


A reivindicação de liberdade para interpretar a Bíblia tornou-se não só um dos pilares da reforma protestante como o princípio fundador do projeto educacional de Lutero, que valorizou a alfabetização e o ensino de línguas – e, mais importante, pregou o acesso de todos a esse conhecimento. Os renovadores religiosos defendiam a formação de uma nova classe de homens cultos, dando origem ao conceito de utilidade social da educação.

Lutero tinha um projeto inovador, mas abominava a possibilidade de se tornar porta-voz de qualquer idéia ou ambição revolucionária. Mesmo assim, o surgimento do protestantismo foi ao encontro dos desejos da classe economicamente emergente de comerciantes, para quem a educação representava uma possibilidade de aceitação e ascendência social. Nas primeiras décadas do século 16, o Sacro Império Romano-Germânico era um mosaico de principados mais ou menos independentes. Os interesses político-econômicos do imperador, da Igreja e dos príncipes emperravam uns aos outros. Os príncipes, menos obrigados ao poder papal do que o imperador, viram em Lutero uma possibilidade de se afirmar politicamente contra a autoridade central e de contestar os direitos da Igreja sobre riquezas que se encontravam em seus territórios.

O fato de Lutero não acreditar que a salvação da alma estivesse vinculada às ações durante a vida não implicava descaso pelas coisas mundanas. Ao separar as esferas do poder espiritual e do poder temporal, o líder religioso alemão atribuía ao último a responsabilidade de administração da vontade de Deus – por isso a obediência civil seria um dever moral e a rebelião um pecado. “A ligação entre os dois mundos é a fé, porque os que crêem são também vocacionados para servir o próximo na sociedade”, afirma o pastor Walter Altmann.

Instrução para fortalecer a cidade

Tão importante quanto Lutero para a educação foi Philipp Melanchthon (1497-1560). Durante o período que Lutero passou impedido de se manifestar publicamente, Melanchthon foi o porta-voz da causa reformista e se encarregou de reorganizar as igrejas dos principados que aderiram ao luteranismo. Esse trabalho resultou no projeto de criação de um sistema de escolas públicas, depois copiado em quase toda a Alemanha. A reforma da instrução era uma das principais reivindicações das camadas mais pobres da população, insatisfeitas com as más condições de vida e com o ensino escasso e ineficaz oferecido pela Igreja. Esses foram alguns dos motivos da revolta armada dos camponeses, sangrentamente reprimida em 1525. Tanto Melanchthon quanto Lutero viam na educação um assunto do interesse dos governantes. “A maior força de uma cidade é ter muitos cidadãos instruídos”, escreveu Lutero. Para isso, foi criado um sistema que atendia à finalidade de preparar para o trabalho e à possibilidade de prosseguir os estudos para elevação cultural. O currículo era baseado nas ciências humanas, com ênfase na história.

Para pensar

A criação de uma rede de ensino público foi planejada pelos reformadores luteranos a pedido de governantes que perceberam a urgência de oferecer instrução ao povo. O interesse dos príncipes era fortalecer seus domínios num tempo de constantes hostilidades entre os Estados. “Lutero argumentou que o dinheiro investido em educação seria menor que o gasto com armas e traria mais benefícios”, diz o pastor Altmann. E você, que argumento utilizaria, hoje, a favor da educação para todos? (coloque sua resposta no campo comentário abaixo).

FONTE: educar para crescer.abril

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Do jeito que foi feito, não ter problema no pré-teste seria sorte













Maneira como as questões do Enem são testadas mostra que Teoria de Resposta ao Item não existe


A tradicional falta de transparência sobre as políticas educacionais do País dificulta o entendimento dos equívocos e erros nos processos relacionados ao Exame Nacional do Ensino Médio. Sem dados, é quase impossível fazer uma discussão mais qualificada do que a proposta pelos títulos de jornais e pelas chamadas de TV no caso da antecipação de questões do exame por colégio de Fortaleza.

Porque uma escola divulgou em simulado itens que caíram no Enem 2011, hoje sabemos que ospré-testes de questões em 2010 contaram com 32 cadernos diferentes, dos quais dois foram copiados e entregues para pessoas diretamente ligadas ao Colégio Christus, centro da principal polêmica do exame este ano. Segundo o que foi apurado até agora, as quatro apostilas entregues aos alunos do colégio e de seu cursinho tinham, no total, 92 questões.

Provavelmente, os responsáveis pela confecção das apostilas utilizaram todas as questões copiadas das duas provas a que tiveram acesso (não ficou claro se as 32 provas diferentes foram aplicadas no pré-teste que aconteceu no próprio colégio).

Das 92 questões, 14 eram idênticas às cobradas na prova do Enem. Isso demonstra que cerca de 15% das questões testadas nessas duas provas foram utilizadas no exame. Cada pré-teste do MEC, sendo verdadeiro tudo o que se sabe até aqui, tinha 46 questões. Se eram 32 diferentes, no ano passado tivemos testadas 1472 itens do banco do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).


Cada umas das questões foi testada em cerca de 3.000 alunos.

Com esses números podemos fazer algumas deduções e encontrar caminhos que ajudam a melhorar o Enem. De início, fica claro que a Teoria de Resposta ao Item (TRI) não é aplicada na prova, ou pelo menos não da forma que o governo quer que acreditemos que é. Se em duas provas do teste estavam 14 questões, é obvio que todas as 180 questões do Enem, ou a grande maioria, foram testadas em 2010. Qual é o problema disso? O problema é que um banco de dados em que as questões tenham o mesmo nível de dificuldade não pode ser feito ano a ano, com as questões sendo testadas e aplicadas no ano seguinte.

Na curva de TRI, utilizada para saber quais questões têm o mesmo nível de dificuldade, são utilizados vários dados, como porcentagem de acertos, moda, mediana e desvio padrão. Só tem a mesma dificuldade um item com uma curva idêntica à outra. Um cálculo impossível de ser feito a mão.


Mas, para simplificar, analisemos uma questão como se o TRI considerasse somente a porcentagem de acertos. Um item que hoje 70% das pessoas acertam não tem a mesma dificuldade que uma questão que 70% das pessoas acertam daqui a 10 anos. Isso porque, neste período, as competências, habilidades e conteúdos das pessoas podem ter aumentado ou diminuído, dependendo das políticas públicas relacionadas à educação e dos fatores que educam fora da sala de aula.


Para aplicar a TRI em uma prova que tem suas questões divulgadas publicamente é necessária a construção de um banco de dados com dezenas de milhares de questões, todas testadas em um mesmo ano. Enquanto o MEC não deixar claro como usa a TRI, por exemplo divulgando os relatórios pedagógicos das provas aplicadas do Enem – o que não foi feito em 2009 e 2010, considero uma dúvida se as provas, de anos diferentes, tem o mesmo nível de dificuldade. E, consequentemente, afirmo não haver nenhum elemento que demonstre ser verdadeiro o anúncio feito pelo MEC de que de 2009 para 2010 os alunos melhoraram seu desempenho no Enem.


Também sabemos que alguns alunos desses colégios que foram sorteados para fazer o teste das questões do Enem tiveram a oportunidade de resolver, antecipadamente, pelo menos sete questões que estavam no Enem 2011. Mesmo que não houvesse nenhum vazamento e que não existissem essas quatro apostilas do Christus, a vantagem desses alunos é clara, mesmo que pequena. Sabendo da necessidade de testar questões, não se pode permitir que nenhuma pessoa veja antes mais do que uma ou duas questões de cada edição das provas. Nem mesmo os formuladores dos itens.


Se garantirmos esse limite, o conhecimento de questões previamente perderia importância relativa em uma prova de 180 perguntas. Tivesse só uma questão idêntica ao Enem 2011 em cada uma das duas provas aplicadas no colégio de Fortaleza em 2010, mesmo com o vazamento, teríamos hoje apenas um pequeno problema, mas muito mais simbólico, dentro de um ponto de vista de disputa política e da aceitação ou não do Enem como vestibular, do que como um problema que realmente violou a igualdade entre os candidatos no dia do exame.

E a solução para o problema é a mesma. Se tivéssemos testadas 23 mil questões, em 500 provas diferentes, com 1,5 milhão de alunos, incluindo universitários, certamente qualquer vazamento seria um problema isolado e seria muito mais tranquilo explicar para a sociedade a necessidade de testar as questões utilizadas na prova. As políticas precisam ser feitas considerando as instituições. Fazer esses testes simplesmente confiando na boa fé das pessoas envolvidas no processo é pedir para que ocorram problemas. Do jeito que foi feito, não ter nenhum vazamento seria muita sorte.


Com tranquilidade, eu desafio o MEC a aplicar a prova de Matemática do Enem de 2010 e de 2011 em qualquer grupo de 100 alunos no Brasil. Tenho plena convicção de que o desempenho nas duas provas será muito diferente. E isso em qualquer escala de notas que for utilizada (hoje a escala de notas do MEC, para as provas objetivas do Enem, não é absoluta, mas calculada por desvio padrão).

A maior preocupação, em relação aos insistentes erros do Enem, é que uma política pública de extrema importância tenha que ser descartada devido à incompetência em sua aplicação. Os tradicionais vestibulares brasileiros são um horror para a educação da nossa sociedade. Seu caráter predominantemente conteudista faz com que as escolas de ensino médio abandonem qualquer experiência de educação em favor do ensino, o que acaba com os talentos da maioria de nossa juventude. Parte de suas questões são como licitações direcionadas, em que governos 'escolhem' quem vai ganhá-las. Quando escolhem as questões, os vestibulares já sabem os alunos de que escolas irão acertá-las e que ocuparão as vagas mais concorridas. O Enem pode ser o instrumento para mudar isso, induzir as reformas no ensino médio e incluir o 'aprender a conhecer', o 'aprender a fazer', o 'aprender a ser' e o 'aprender a conviver' nas salas de aula, além de ajudar a democratizar o acesso ao ensino superior público. Mas para isso ele não pode ser uma 'ilha' na cabeça do ministro e de alguns de seus assessores. Ele precisa ser gerido com prioridade, com mais investimentos, com mais técnicos e com uma estrutura condizente com a sua importância.

FONTE: ultimo segundo.ig / Mateus Prado Educador


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Entenda a TRI, usada para calcular a pontuação no Enem

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Guarani, a língua proibida













Castigos físicos nas escolas faziam parte da campanha de disseminação do idioma português no período colonial


Até a década de 1750, falar português não era o suficiente para se comunicar no Brasil. Na Colônia, predominava ainda a chamada língua geral. Baseada originariamente no tupi, ela passou por modificações ao longo dos contatos entre os índios e os europeus, até tornar-se a linguagem característica da sociedade colonial. A língua geral era, portanto, falada não apenas pelos índios, mas também por amplas camadas da população. Em algumas regiões da Colônia, como em São Paulo e na Amazônia, ela era utilizada pela maioria dos habitantes, a ponto de exigir que as autoridades portuguesas enviadas a esses lugares se valessem de intérpretes para se comunicar.
Por tudo isso, na segunda metade do século XVIII, a Coroa portuguesa criou uma série de leis para transformar os índios em súditos iguais aos demais colonos. Com as mudanças, pretendia-se eliminar as diferenças culturais características dos grupos indígenas, fazendo deles pessoas “civilizadas”. Essas leis, pensadas inicialmente para a Amazônia, foram sistematizadas em 1757 num texto chamado Diretório dos Índios, que acabou se estendendo, posteriormente, para o restante da Colônia. O principal mentor desta política foi Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido mais tarde como Marquês de Pombal.
A Coroa pretendia impor o uso do idioma português entre as populações nativas da América porque Pombal entendia que as línguas indígenas reforçavam os costumes tribais, que ele pretendia extinguir. Na sua visão, o uso da língua portuguesa ajudaria a erradicar esses costumes, aumentando a sujeição das populações indígenas ao Rei e à Coroa portuguesa. Pombal entendia, com razão, que o idioma era uma importante arma para o controle político dos súditos.
Para mudar esse cenário, o Diretório determinava a fundação de escolas para as crianças índias, nas quais, além de aprender o português, aprenderiam também os costumes ocidentais. Elas deveriam ser convertidas à fé católica, vestir-se de acordo com os brancos e aprender disciplina de trabalho. Desta forma, a Coroa – numa terra ainda com baixa densidade demográfica – aumentaria seu contingente de vassalos.
Este aspecto era particularmente interessante nas fronteiras, pois serviriam como garantia da efetiva ocupação lusitana nos seus domínios e de possível bastião contra os ataques espanhóis. Assim, apesar de vigorarem para toda a Colônia, as medidas pombalinas foram empregadas com mais rigor nas duas principais fronteiras da América portuguesa: a Amazônia e o Rio Grande de São Pedro.
No início da década de 1760, foi fundada uma aldeia indígena na região norte do Rio Grande, denominada Nossa Senhora dos Anjos, onde fica hoje a cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre. Esta aldeia foi povoada com índios guaranis, trazidos dos Sete Povos das Missões por Gomes Freire de Andrade, no final da década de 1750. Nessa época, Portugal e Espanha estavam tentando consolidar o Tratado de Madri, segundo o qual Portugal abriria mão definitivamente da Colônia de Sacramento em prol da Espanha, que entregaria os Sete Povos aos lusitanos. Os dois governos criaram uma comissão de demarcação para fiscalizar a execução do Tratado, que, por vários motivos, acabou sendo anulado. Gomes Freire, como chefe da comissão de demarcação portuguesa, ao se retirar da região das Missões trouxe em torno de 3.000 índios guaranis para o território do Rio Grande, com o propósito de transformá-los em súditos de Portugal.
A Aldeia dos Anjos foi o principal estabelecimento indígena do Rio Grande no século XVIII. Lá foram aplicadas com maior empenho as determinações do Diretório em relação aos índios. Em meados da década de 1770, o governador José Marcelino de Figueiredo fundou na aldeia duas instituições de ensino para os índios: uma escola para os meninos e um recolhimento para as meninas, ambos em regime de internato. Um fato interessante – para entender como operavam essas duas instituições – é que o governador elaborou dois regimentos distintos, nos quais estipulava detalhadamente a rotina a ser seguida pelos alunos. Esses regulamentos nos permitem recuperar um pouco do cotidiano dos internos.
O dia era estritamente regrado, tendo uma hora específica para cada atividade. Os alunos deveriam acordar pela manhã, fazer a higiene pessoal e almoçar. Após o almoço, permaneceriam das oito às onze na escola, onde aprenderiam a falar, ler e escrever em português, a rezar e argumentar. Jantariam ao meio-dia e teriam descanso até as duas horas, quando retornariam para a escola onde ficariam até as cinco. No verão, entrariam às três e sairiam às seis.
Depois das aulas fariam suas orações, ceariam e deveriam se recolher. Nas semanas em que não houvesse feriado, teriam um dia de folga. Neste dia, poderiam receber a visita de seus parentes do meio-dia às duas. No dia de folga e nos feriados santos, o mestre poderia escolher entre os seus alunos alguns que considerasse mais aplicados, aos quais concederia licença para visitarem seus pais. Se um destes meninos cometesse algum tipo de desordem na Aldeia, o mestre deveria ser informado, para que suspendesse a concessão de licenças. Os sábados e os domingos eram destinados às atividades religiosas. A limpeza e organização do espaço da escola ficariam a cargo dos meninos, que, em sistema de rodízio, deveriam passar, cozinhar, varrer etc.
Para eliminar a língua guarani da vida das crianças, elas eram proibidas de usá-la na escola. Estavam previstos um castigo físico para o menino que falasse guarani e o perdão para quem o delatasse. Aos domingos, quando os estudantes recebiam visitas dos parentes, só podiam falar com eles em português. Esta tarefa deve ter sido muito difícil, pois os índios mais velhos, acostumados a falar apenas o guarani, não compreendiam o português. Esta determinação, se cumprida à risca, praticamente impossibilitaria a comunicação entre alunos e parentes.
Os meninos não permaneciam muito tempo na escola. Quando fossem considerados aptos nas matérias ministradas e soubessem a língua portuguesa, deveriam deixá-la para dar lugar a outros. Mas alguns meninos que se destacavam eram enviados ao Rio de Janeiro, para completar os estudos. Foi o próprio vice-rei, marquês do Lavradio, quem solicitou ao governador do Rio Grande que os enviasse para serem educados na Corte. Segundo Lavradio, ele tomaria conta pessoalmente dos índios quando chegassem ao Rio. Existem poucas informações sobre a trajetória desses estudantes, mas se sabe que alguns deles conseguiram completar sua formação, tendo chegado à ordenação como padres.
O recolhimento das meninas era uma instituição de ensino característica da sociedade colonial. As internas ficavam reclusas e afastadas de todo o convívio com as pessoas do sexo oposto. Na opinião da maioria das autoridades portuguesas e dos colonos, as índias eram mulheres de segunda categoria, que não tinham o comportamento esperado das pessoas do sexo feminino. Ou seja, elas não eram recatadas, não tinham pudor em mostrar determinadas partes do corpo e não se conservavam virgens até o casamento, como deveriam proceder as mulheres consideradas honestas.
O internato servia, então, para afastar as meninas do convívio com suas famílias, nas quais, na visão dos portugueses, aprendiam maus costumes. Era melhor mantê-las sob rígida vigilância da mestra do recolhimento. Ao contrário dos meninos, elas não recebiam licença para visitar parentes nos dias folga. As visitas eram recebidas no locutório, um compartimento separado por grades, onde as pessoas podem conversar, mas não têm contato físico direto. A entrada de homens no recolhimento era proibida, com exceção do pároco e dos cirurgiões e sangradores. Mas estes deveriam estar sempre acompanhados de várias meninas, evitando deixar alguma delas sozinha com uma pessoa do sexo oposto. Nem mesmo mulheres de fora podiam entrar no recolhimento, sendo permitido apenas o trânsito das duas criadas do internato.
Para ingresso no recolhimento, a idade mínima era de 6 anos e a máxima de 12, sendo que o número de meninas não poderia ultrapassar 50. O dia era dedicado às orações, ao aprendizado e aos trabalhos domésticos. Ao nascer do sol deveriam levantar-se e fazer a higiene pessoal, seguindo depois para as orações. Após a reza, as meninas índias iriam para o trabalho, que poderia ser de costura ou de fiação e tecelagem. Então jantariam, teriam um tempo de repouso e retornariam ao trabalho. Logo em seguida viria a ceia, com novo turno de orações, após as quais deveriam recolher-se. Caberia à mestra do recolhimento zelar pelas roupas das índias, sempre feitas de algodão e em cores neutras. Dois eram os objetivos a serem alcançados com as meninas: que soubessem a língua portuguesa, não sendo permitido falar o guarani, e que aprendessem a se portar como mulheres “honestas”, sabendo comportar-se e fazer todos os serviços necessários ao bom funcionamento de uma casa.
Diferentemente dos meninos, às meninas não se ensinava a ler, escrever e contar, atividades consideradas irrelevantes para aquelas que deveriam dedicar-se apenas ao trabalho doméstico. Enquanto estavam no recolhimento, podiam receber propostas de casamento, que eram enviadas ao governador. Ele analisava as qualidades do pretendente e, caso este lhe agradasse, autorizava as núpcias. Neste caso, o governador também pagava um dote para as índias, com dinheiro da Fazenda Real.
Todos os relatos da época afirmam que uma das maiores dificuldades da escola e do recolhimento foi a substituição do guarani pelo português. É provável que esses relatos tenham feito generalizações muito amplas, pois é de se supor que alguns alunos devam ter aprendido o português, principalmente os que prosseguiram nos estudos. Mas este não parece ter sido o caso da maioria dos índios. Os governadores do Rio Grande se impressionavam com o fato de que, decorridos vários anos do estabelecimento dos índios na Aldeia e da fundação das escolas, estes ainda falassem apenas o guarani. Segundo os relatos, a maior parte dos índios nem mesmo conseguia se fazer entender nos confessionários, pois não havia padres na Aldeia que soubessem sua língua.
Muito índios, no entanto, por meio da escola ou por outros meios, se integraram à sociedade colonial, falando o português, trabalhando no comércio e adquirindo hábitos tidos como civilizados. É o que se pode ver na pintura de Debret (pág. 73) que traz a imagem de uma índia guarani indo para a igreja. Ela está vestida da mesma forma que as senhoras brancas, leva o cabelo preso e está carregando dois crucifixos, um no pescoço e outro na mão.
Enquanto funcionaram, tanto a escola quanto o recolhimento foram alvo de críticas por parte dos colonos estabelecidos no Rio Grande, que não encontravam justificativas para educar os índios, já que eram vistos como pessoas de natureza inferior, sem capacidade de aprendizado. Os colonos consideravam um desperdício a manutenção das instituições de ensino e propunham a utilização dos índios em trabalhos de baixo valor social, como o corte de madeiras, a construção de estradas etc. A escola e o recolhimento da Aldeia eram os únicos estabelecimentos de ensino existentes no Rio Grande, o que deixava os colonos indignados. Para eles, o dinheiro deveria ser gasto com as crianças brancas, com as quais se obteria algum tipo de resultado proveitoso, e não com os índios, considerados inaptos ao trabalho intelectual.
Também havia uma forte oposição ao pagamento dos dotes para o casamento das índias do recolhimento. Devido a sua má fama, os colonos julgavam improvável que pessoas procedentes de famílias honestas se casassem com elas. Na opinião deles, mesmo que houvesse casamentos, o dinheiro empregado nos dotes seria inútil, pois as índias não saberiam manter uma família nos moldes ocidentais, nem criar os filhos dentro dos padrões “civilizados”. Sem dúvida, estes preconceitos dificultaram a realização dos casamentos, embora algumas internas tenham recebido propostas de matrimônio, constituindo famílias dentro das normas portuguesas.
Tanto a escola quanto o recolhimento foram desativados em 1800, por falta de alunos. Os prédios onde funcionavam foram vendidos, e a iniciativa de se criar escolas para os índios foi abandonada. Sendo um dos únicos exemplos de instituições para a educação dos índios na América portuguesa da segunda metade do século XVIII, a escola da Aldeia dos Anjos oferece um bom exemplo para pensar a função da educação e a sua relação com as diferenças culturais. Apesar de alguns índios terem se beneficiado desta iniciativa, a escola não alcançou seus objetivos na dimensão esperada. O espaço formado para a educação não tinha lugar para as suas próprias manifestações culturais. Ensinava-se os elementos da cultura portuguesa para anular a experiência anterior dos alunos, desconsiderando toda a rica herança cultural de seus antepassados.
FONTE: REVISTA DE HISTÓRIA / Elisa Frühalf Garcia 

A Humanidade como Deusa

















O movimento positivista brasileiro defendeu
 os direitos dos negros, das mulheres e
 dos operários
José Murilo de Carvalho

Quem passa pela Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, Rio de Janeiro, encontra, à altura do número 74, um tanto afastado da calçada, um prédio de estilo neoclássico. No alto da fachada é possível ler a inscrição: “Religião da Humanidade” e, mais abaixo, os dizeres: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.” Embora não pareça, trata-se de uma igreja, mais precisamente, o Templo da Humanidade. O templo foi inaugurado em 1897 pela Igreja Pozitivista do Brazil. Assim mesmo, com “z”. Uma das reformas propostas pelos positivistas foi a ortográfica, que tinha o propósito de adequar a escrita do português à prosódia brasileira. Os dizeres traduzem os princípios básicos, a “fórmula sagrada”, da filosofia de Auguste Comte, pensador francês fundador do positivismo e da religião da Humanidade, autodenominado primeiro Sumo-Pontífice da Humanidade.

Por dentro, o templo se parece muito a uma igreja católica. A nave é circundada de bustos representando figuras importantes da História da humanidade, equivalentes aos santos católicos. Na parte da frente, há um altar-mor, encimado por um grande quadro representando uma figura de mulher com um filho nos braços, de autoria do pintor Décio Vilares. Abaixo do quadro, há um busto de Auguste Comte. Acima do quadro, a palavra Humanidade. Mais acima, em italiano, um verso tirado da Divina Comédia, de Dante, referente à Virgem Maria, “Vergine-Madre, Figlia del tuo Figlio”, isto é, “Virgem-mãe, filha de teu filho”.
Comte copiou quase tudo da Igreja Católica, arquitetura, rituais, sacerdócio, santos. Copiou, sobretudo, o culto à Virgem-Mãe. Mas introduziu uma grande alteração. Eliminou a idéia de transcendência, isto é, rejeitou a existência de um deus separado e distante da humanidade. Trouxe a religião para a Terra. O Deus para ele era a própria humanidade. O Deus era uma deusa, a Deusa Humanidade, palavra que ele grafava sempre com inicial maiúscula.
A representação pictórica da Humanidade devia ser a figura de uma mulher de cerca de 30 anos, carregando uma criança nos braços. O rosto dessa mulher devia ser de Clotilde de Vaux, mulher por quem o filósofo se apaixonou perdidamente e sob cuja inspiração criou a nova religião. O verso de Dante, aplicado à humanidade, adquiria um sentido preciso: a humanidade é virgem, isto é, não fecundada por força externa a si mesma. A humanidade é filha de seus filhos, isto é, não foi criada por uma entidade estranha, ela gera os seres humanos e é por eles gerada. Coerentemente, os positivistas, ao se despedirem, não diziam adeus, mas adeusa. Paralelamente ao culto à humanidade, eles desenvolveram um culto à mulher, sob o argumento de que ela era superior ao homem por representar o sentimento do amor, mais valorizado que a ação e a razão, típicas do homem.
Mas a religião era um desenvolvimento tardio no pensamento de Comte, ocorrido após seu encontro com Clotilde. O positivismo era, sobretudo, uma filosofia da História e uma teoria política. Dentro da visão evolucionista do século XIX, que incluía o darwinismo e o marxismo, Comte desenvolveu a lei dos três estados. Segundo essa lei, a humanidade passaria por uma primeira fase chamada de teológico-militar, em que o poder espiritual estava nas mãos de sacerdotes e o temporal na de militares. A seguir, entraria na segunda fase, denominada metafísica, em que o predomínio espiritual era de filósofos e o governo estaria na mão de legistas, e o regime político seria a democracia. As nações ocidentais estariam nessa fase. A terceira fase seria a positiva. Os sociólogos, isto é, os sacerdotes positivistas, controlariam o poder espiritual, e a burguesia, o poder material. O regime político nessa fase seria a ditadura republicana. A principal tarefa da ditadura republicana era garantir a liberdade espiritual e incorporar os proletários à sociedade.
Tudo isso parece hoje um tanto estranho, merecedor, no máximo, de uma curiosidade complacente. De fato, o positivismo religioso teve pouco impacto na França, onde se originou. Mas o próprio Comte, morto em 1857, ficaria surpreso se tivesse podido testemunhar a influência que ele teve no Brasil. O único contato que teve com nosso país se deu graças a uma brasileira, Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nísia foi uma pessoa extraordinária, pioneira da emancipação feminina entre nós. Em 1851, assistiu em Paris a uma conferência de Comte e impressionou-se com a importância que ele dava às mulheres. Trocou com ele várias cartas, mas não se converteu à nova religião. Comte achava que ela estava por demais marcada pelo racionalismo do século XVIII. Nísia foi uma das quatro mulheres a acompanhar o enterro do filósofo.
O Brasil foi o país em que o positivismo religioso teve maior influência, se levarmos em conta o número de adeptos, a criação de uma igreja e o impacto no pensamento e na política. Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul foram os principais focos dessa influência, que se exerceu, sobretudo, no período entre 1880 e 1930. Além do templo do Rio, há uma capela positivista em Porto Alegre. Inicialmente, o positivismo chegou até nós pela ação de militares, médicos e engenheiros formados na França. Em 1876 foi criada no Rio de Janeiro uma Sociedade de Simpatizantes do Positivismo, mas que só aceitava o pensamento de Comte anterior à criação da Religião da Humanidade. No ano seguinte, dois jovens membros da Sociedade, o fluminense Miguel Lemos e o maranhense Teixeira Mendes, expulsos da Escola Politécnica, foram para Paris, onde aderiram ao positivismo religioso.
De volta ao Brasil, Miguel Lemos assumiu a direção da Sociedade Positivista e a transformou, em 1881, em Igreja Positivista do Brasil. A partir daí, começou a colocar em prática os ensinamentos de Comte. O primeiro passo foi excluir da Igreja todos os que não se enquadrassem nos dogmas. O ex-presidente da Sociedade Positivista, Joaquim Ribeiro de Mendonça, foi excluído por ser proprietário de escravos. Benjamin Constant, um dos futuros proclamadores da República, saiu por ser professor da Escola Militar. Segundo Comte, positivistas não podiam aceitar cargos públicos, sobretudo em escolas públicas de ensino superior.
A partir do controle da Igreja, Miguel Lemos e, depois dele, seu alter-ego Teixeira Mendes, como chefes da Igreja e apóstolos da Humanidade, desenvolveram intensa atividade de proselitismo e propaganda das idéias positivistas. Publicaram centenas de folhetos e de artigos em jornais. Organizaram várias celebrações cívicas, conferências, desfiles, construíram monumentos. Nos folhetos e nos artigos de jornal – contrariando prática generalizada da época que admitia o anonimato –, os dois chefes e todos os adeptos não apenas assinavam o nome como forneciam o endereço, a data e o local de nascimento, seguindo mais uma popular regra de Comte, a de “Viver às claras”.
Por seu comportamento, idéias e, sobretudo, suas estranhas práticas religiosas, os positivistas despertaram forte reação. Para alguns eram ridículos, para outros, fanáticos religiosos ou malucos, lunáticos alheios à realidade nacional. Mas muitas das campanhas que organizaram e das teses que defenderam, embora de fato contrárias a idéias, valores e práticas nacionais, nada tinham de malucas. Uma de suas principais campanhas foi pela abolição da escravidão. Retomando o pensamento de José Bonifácio, um de seus heróis cívicos ao lado de Tiradentes e Benjamin Constant, não só defenderam a abolição imediata como inverteram a visão, comum na época, da superioridade dos brancos.
Para eles, a raça negra era superior à branca e à amarela por se caracterizar pelo predomínio do sentimento. Gilberto Freyre não ousaria tanto. Foram ainda mais longe, ao promoverem o culto cívico de Toussaint Louverture, o líder da revolta dos escravos haitianos. Num país em que o haitianismo, isto é, a revolta escrava, era um fantasma, exaltar “o mais eminente dos pretos” (ainda não tinham ouvido falar de correção política) era uma ousadia.
Outra campanha, também inspirada em José Bonifácio, teve por alvo a proteção dos indígenas – outro grupo de brasileiros que, ao lado dos escravos, diziam os positivistas ser martirizado em nossa sociedade. O principal agente dessa campanha foi Cândido Mariano da Silva Rondon, criador e primeiro diretor do Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910. Rondon dedicou a vida à causa da proteção aos índios, buscando garantir que se integrassem à sociedade no ritmo e na maneira que eles mesmos escolhessem.
Lutaram ainda pela proclamação da República. Republicanos, desde a época de estudantes da Politécnica, tiveram a crença reforçada pela doutrina positivista, que colocava a República como o regime próprio da fase positiva da evolução da humanidade. Como não aprovavam revoluções, insistiram com d. Pedro II para que ele se transformasse em ditador republicano. Não foram informados sobre o 15 de Novembro, mas, ao tomarem conhecimento da proclamação, dirigiram-se aos chefes do movimento insistindo em que proclamassem a ditadura republicana. Em relação à República, tiveram ainda papel importante em promover o culto de Tiradentes e a construção dos monumentos a Floriano Peixoto e Benjamin Constant no Rio de Janeiro, localizados na Cinelândia e no Campo de Santana, e a Júlio de Castilhos em Porto Alegre.















Foi deles ainda o desenho da atual bandeira nacional, executado por Décio Vilares. Combatendo os que queriam copiar a bandeira norte-americana, defenderam o respeito à bandeira imperial, introduzindo nela algumas mudanças. A mais polêmica foi a introdução da divisa “Ordem e Progresso”, tirada de instruções de Comte. A divisa sobreviveu aos protestos e resistiu a repetidas tentativas de eliminação.

Seguindo ainda os ensinamentos de Comte, nossos positivistas lutaram pelo que chamavam de incorporação do proletariado à sociedade moderna. Essa luta intensificou-se após a abolição e a proclamação da República e desdobrou-se em várias batalhas. Uma delas foi contra a importação de trabalhadores estrangeiros. Alegaram que os imigrantes viriam tomar os empregos dos nacionais, sobretudo dos libertos. Outra foi a defesa da greve em caso de insensibilidade dos patrões. Outra ainda foi o combate à lei de repressão à vadiagem introduzida após a proclamação do novo regime. Defendiam o direito ao não-trabalho e argumentavam que os vagabundos mais nocivos ao país eram os ricos, os burgueses, e não os pobres e mendigos. O general Manuel Rabelo, positivista, interventor em São Paulo em 1930, ganhou o apelido de cidadão-mendigo por ter ordenado em decreto que os mendigos fossem tratados como cidadãos. Finalmente, insistiram na criação de legislação trabalhista e social. Jornada de sete horas, salário justo, descanso semanal, férias, aposentadoria. Ao introduzir a legislação trabalhista depois da Revolução de 1930, Lindolfo Collor, primeiro ministro do Trabalho, justificou-a referindo-se aos ensinamentos positivistas.

Lindolfo Collor era gaúcho e foi no Rio Grande do Sul que o positivismo teve grande influência. A constituição gaúcha de 1891 incorporou várias idéias positivistas, muitas delas em aberto conflito com a Constituição federal. O presidente do estado podia ser reeleito e decretava as leis depois de ouvidas as câmaras municipais. A assembléia legislava apenas em matéria orçamentária, a educação pública limitava-se ao ensino básico, e era permitido o exercício de qualquer profissão sem exigência de diploma.

Os positivistas eram radicalmente contrários a revoluções, guerras e governos militares. Lembre-se que o predomínio militar representava para eles o estado mais atrasado da humanidade. Lutaram contra o serviço militar obrigatório, pela solução pacífica das questões de fronteiras com os vizinhos, pela restituição dos troféus de guerra tomados ao Paraguai e pelo perdão da dívida de guerra desse país. Seu pacifismo completava-se com um ecologismo radical. Sua principal inspiração aqui era São Francisco de Assis, o santo que chamava de irmãos e irmãs a todas as criaturas, pregava aos peixes e pássaros. Teixeira Mendes não usava sapato de couro para não ser conivente com a morte de animais. Antes de morrer, providenciou a construção de um monumento a São Francisco, localizado no Campo do Russel, no bairro da Glória. Depois de sua morte, os positivistas colocaram um busto dele perto do monumento.

Como se vê, suas campanhas nada tinham de loucura ou lunatismo, embora contradissessem práticas e idéias vigentes. Influenciaram o debate público, a política e movimentos sociais da época, como a Revolta da Vacina. Sua influência desceu até o samba. Noel Rosa e Orestes Barbosa compuseram o samba Positivismo, que dizia: “O amor vem por princípio,/ E a ordem por base./ O progresso é que deve vir por fim./ Contrariando esta lei de Augusto Comte,/ Tu foste ser feliz longe de mim.”

Um ponto em que nossos positivistas estavam, de fato, muito distantes da realidade brasileira era o da moral pública. Para eles, o interesse coletivo devia predominar sobre o individual. Todos, patrões e operários, eram funcionários da humanidade. Entendiam a república em seu sentido original, romano, de regime voltado para a realização do bem público. O cidadão republicano era, por definição, um cidadão virtuoso, dedicado à causa pública. Os chefes positivistas jamais aceitaram cargos públicos e não faziam qualquer concessão em matéria de moralidade pública. Repetiam a frase de José Bonifácio: “A sã política é filha da moral e da razão.” Os positivistas que ocuparam cargos públicos, como o marechal Rondon, foram sempre funcionários exemplares, às vezes para desespero das famílias, que não podiam beneficiar-se da posição do chefe.
A nós que vivemos hoje, cem anos depois, numa República em que o público é alvo costumeiro da rapina de políticos, funcionários e empresários predadores, os positivistas parecem seres ainda mais estranhos, uns alienígenas, uns ETs.
FONTE: Revista de Historia /José Murilo de Carvalho é professor titular da UFRJ.

O dia em que Portugal fugiu para o Brasil









Momentos dramáticos marcaram os preparativos de um acontecimento inédito: a transferência em peso de uma casa real européia, a bordo de 15 navios, para o continente americano

Na madrugada de 25 de novembro de 1807, quando d. João encerrou a sessão do Conselho de Estado, a decisão estava tomada. A família real deveria embarcar para o Brasil daí a dois dias, antes que as tropas de Napoleão, que já tinham cruzado as fronteiras lusitanas, alcançassem Lisboa. Chegara enfim a hora de se executar um plano que já se conhecia de cor, e de traçar, rapidamente, o procedimento operacional de uma gigantesca tarefa: mudar, da terra para o mar, tudo e todos que significassem a sobrevivência e a sustentação do governo monárquico a ser instalado no Rio de Janeiro.

Fazer as malas, zarpar rumo ao Brasil e lá estabelecer um império não era uma idéia nova. O translado da família real para essa colônia pairava como uma possibilidade acalentada há tempos e sempre ventilada nos momentos em que a realeza portuguesa sentia-se ameaçada em sua soberania. Já em 1580, quando a Espanha invadiu Portugal, o pretendente ao trono português, o prior do Crato d. Antônio – filho ilegítimo do infante d. Luís – foi aconselhado a embarcar para o Brasil. Também o padre Vieira apontou o Brasil como refúgio natural para d. João IV – “ali lhe assinaria o lugar para um palácio que gozasse, ao mesmo tempo, as quatro estações do ano, fazendo nele o quinto império (...)”. Em 1738, no reinado de d. João V, o conselho veio de d. Luís da Cunha, que via na mudança possibilidades de um melhor equilíbrio entre a metrópole e a colônia, então abarrotada de ouro. Em 1762, temendo uma invasão franco-espanhola, Pombal, ministro de d. José I, fez com que o rei tomasse “as medidas necessárias para a sua passagem para o Brasil, e defronte do seu Real Palácio se viram por muito tempo ancoradas as naus destinadas a conduzir com segurança um magnânimo soberano para outra parte de seu Império (...)”.

Não é, pois, de estranhar que, no meio da convulsão européia, os políticos que rodeavam o príncipe d. João trouxessem à tona a velha idéia. Mas o tempo era curto, a viagem longa e cheia de imprevistos. Era a primeira vez que uma casa real cruzava o Atlântico e tentava a sorte afastada do continente europeu. Longe dos tempos dos primeiros descobridores, que atravessaram o oceano para encontrar riqueza e glória em terras americanas, agora era a própria dinastia de Bragança que fugia (na visão de alguns), evitava sua dissolução (na visão de outros), ou empreendia uma política audaciosa, escapando da posição humilhante a que Napoleão vinha relegando as demais monarquias.

FONTE: Revista de Historia / Lilia Moritz Schwarcz

Por que os homossexuais foram perseguidos pela Inquisição no Brasil?








Proporcionalmente, os gays constituíram o grupo social tratado com maior intolerância pelo Santo Ofício, mas apenas aqueles que praticaram a “sodomia perfeita” arderam nas fogueiras


Depois dos cristãos-novos judaizantes, os homossexuais foram os mais perseguidos pela Inquisição portuguesa: trinta homens “sodomitas” foram queimados na fogueira. Proporcionalmente, os gays constituíram o grupo social tratado com maior intolerância por esse Monstrum Terribilem. Foram mais torturados e degredados que os demais condenados e, não bastasse, receberam as penas mais rigorosas. Metade foi condenada a remar para sempre nas galés del Rei.

Mas somente os praticantes do que a Inquisição classificava como “sodomia perfeita” ardiam nas fogueiras. Esta perfeição consistia “na penetração do membro viril desonesto no vaso traseiro com derramamento de semente de homem”. Os demais atos homoeróticos eram considerados pecados graves ou “molice”.

Perseguição irregular

A sodomia, entretanto, não foi estigmatizada e perseguida em todos os tribunais do Santo Ofício da Espanha, nem mesmo pela Inquisição portuguesa em seus primeiros anos de instalação. Isto demonstra que inexplicáveis fatores históricos, políticos e culturais estariam por trás do maior ou menor radicalismo da homofobia católica.

Variações e contradições da condenação moral dos desvios sexuais refletem a condição pantanosa, imprecisa e ilógica do catolicismo em relação ao amor entre pessoas do mesmo sexo. As razões cruciais que levaram a Inquisição a perseguir os homossexuais masculinos teriam sido duas. Ao condenar à fogueira apenas os praticantes da cópula anal, os Inquisidores reforçavam a mesma maldição bíblica que condenava ao apedrejamento “o homem que dormir com outro homem como se fosse mulher”. Ou seja, o crime é derramar o sêmen no vaso “antinatural”, uma vez que judaísmo, cristianismo e islamismo se definem como essencialmente pronatalistas, quando o ato sexual se destina exclusivamente à reprodução. Daí a perseguição àqueles que ousassem ejacular fora do vaso natural da fecundação, uma insubordinação antinatalista inaceitável para povos dominados pelo dogma demográfico do “crescei e multiplicai-vos como as estrelas do céu e as areias do mar”.

A segunda razão tem a ver com o estilo de vida andrógino e irreverente, quiçá revolucionário, dos próprios sodomitas, chamados de “filhos da dissidência”. Eis o trecho de um discurso homofóbico lido num sermão de um Auto de Fé de Lisboa em 1645: “O crime de sodomia é gravíssimo e tão contagioso, que em breve tempo infecciona não só as casas, lugares, vilas e cidades, mas ainda Reinos inteiros! Sodoma quer dizer traição. Gomorra, rebelião. É tão contagiosa e perigosa a peste da sodomia, que haver nela compaixão é delito. Merece fogo e todo rigor, sem compaixão nem misericórdia!”

Luiz Mott é professor da Universidade Federal da Bahia e autor de Sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição (Papirus, 1988).

Saiba Mais

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Editora Record, 2000.
VAINFAS, Ronaldo. O Trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010

FONTE: Revista de Historia